3ª Turma

Jogo combinado

Não é natural ou banal um juiz perguntar a um promotor se “não é muito tempo sem operação?”, algo que não se refere à magistratura.

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Na noite do último domingo uma cena do filme Boleiros (1998), do cineasta Ugo Giorgetti, me veio à mente. Nela, Virgílio, um árbitro de futebol interpretado pelo ator Otávio Augusto, foi subornado para garantir a vitória do time visitante sobre o moleque travesso na Moóca. Ele, árbitro maroto, administrou a partida num sonolento empate até que no final do jogo marcou um pênalti escandalosamente inexistente. Apesar das reclamações dos injustiçados, a bola inapelavelmente repousou na marca da cal, como descreveram os locutores das rádios.

Coringa se apresentou para cobrança. Correu, chutou e o goleiro defendeu. Um detalhe fora do script, mas, ainda, controlável. O árbitro determinou o retorno da cobrança: “o goleiro se mexeu antes”. Então, a bola voltou às mãos do atleta que desperdiçou novamente a penalidade, em mais uma defesa do arqueiro. Partícipe da máxima de que combinado é combinado, Virgílio anulou mais uma vez a jogada sob o mesmo pretexto. Desta vez, a fim de evitar novos contratempos, o árbitro se dirigiu ao incompetente jogador e lhe sentenciou: “some daqui; bate outro”. E assim sucedeu. As redes ainda balançavam quando Virgílio assoprou o apito, encerrando o jogo, com a vitória dos visitantes.

O retrato da cena transcende as linhas do campo de jogo. Ele nos permite enxergar o comportamento inadequado e desprezível de alguém que – apesar de ser obrigado a agir com isenção e imparcialidade nas decisões atinentes ao exercício de sua função – traiu a confiança nele depositada, comprometendo o resultado da partida e o espírito do esporte.

Com as cautelas necessárias, recordar desta cena do filme após tomar conhecimento do teor de parte dos diálogos mantidos pelo, então, juiz Sérgio Moro e o procurador da república, Deltan Dallagnol, parece-me bastante adequado. Embora causem constrangimento e indignação a qualquer pessoa com formação jurídica e com atividade profissional relacionada ao direito, tais mensagens não surpreenderam a muitos de nós, que já apontávamos para a suspeição daquele juiz para instruir e julgar as ações penais envolvendo o ex-presidente Lula.

Tanto, atualmente, em comunidades primitivas, onde as regras jurídicas podem ser mais rudimentares quanto nos períodos históricos mais remotos, em que as sociedades foram paulatinamente abandonando a jurisdição voluntária, isto é, capacidade de solucionar o conflito social sem intermédio de terceiros, um dos pressupostos para impedir esse “fazer direito com as próprias mãos” era o de se garantir a isenção e imparcialidade de quem mediaria ou julgaria o litígio.

No decorrer da história, com o fortalecimento do Estado e a consolidação teórica da tripartição dos poderes, ao Poder Judiciário foi delegada a responsabilidade de apaziguar a sociedade colocando fim aos conflitos. A pedra angular, para tanto, repousaria na garantia concedida aos cidadãos de serem julgados por magistrados e magistradas isentas, imparciais e equidistantes, isto é, sem desejos prévios, sem emitir juízos antecipados e, fundamentalmente, sem auxiliar a alguma das partes, mas sim, submetendo os argumentos apresentados nos processos judiciais à luz dos costumes, regras ou princípios, aplicados a depender do tempo histórico e do lugar. O ordenamento jurídico de nosso país, assim como em todo mundo ocidental, adotou esse modelo ao prever a necessidade de isenção e imparcialidade do (a) magistrado (a) no caso concreto.

Retornando às conversas divulgadas entre Moro e Dallagnol, nas manifestações em redes sociais se percebe um grupo formado por pessoas que não se importam com a violação de normas jurídicas por integrantes da magistratura ou do ministério público, desde que o fim por elas pretendido seja alcançado. Usam camisetas com estampa de fotografias de juiz, colocam adesivos em seus carros em apoio a uma operação policial, criam até república de uma cidade, para manter a prisão do ex-presidente Lula e para afastar seu partido do poder.

As manifestações de apoio aos resultados da operação Lava-jato, isto é, golpe de Estado, prisão de Lula, eleição de Bolsonaro, entre outros, advindas deste agrupamento social não devem surpreender. Diferentemente das tentativas por integrantes do (sub)mundo jurídico e parte dos veículos de comunicação de naturalizarem e banalizarem o acervo divulgado até o momento pelo site The Intercept, taxando-as como conversas corriqueiras entre operadores do direito. Não são!

Não é natural ou banal um juiz perguntar a um promotor se “não é muito tempo sem operação?”, algo que não se refere à magistratura, mas diz respeito ao trabalho do Ministério Público e da Polícia Federal, cujas provas obtidas e os eventuais excessos serão analisados e julgados por este mesmo juiz.

Também não é natural, banal ou corriqueiro, um juiz aconselhar promotor a apressar o julgamento em segundo grau de um processo cuja sentença condenatória ele já proferiu, tudo isso para evitar a soltura do réu (conversa em 27/06/2017 sobre a absolvição de Vaccari). Muito menos, soa natural, banal ou corriqueiro um juiz indicar ao Ministério Público uma possível testemunha contra um investigado que ele mais tarde julgará (conversa em 7/12/2015).   

Igualmente, não se mostra “normal”, corriqueira ou banal a conversa entre um juiz e um procurador da república em que ambos decidem levantar o segredo de justiça, liberando acesso a terceiros, de gravações de áudios, entre elas, um diálogo envolvendo a então presidenta da república e o ex-presidente Lula, obtido sem autorização prévia do Supremo Tribunal Federal. Da leitura das mensagens trocadas nesse dia pode-se inferir que o vazamento dos áudios havia sido deliberado anteriormente, mas, a nomeação do ex-presidente Lula para o Ministério da Casa Civil pode ter ocasionado alguma hesitação, em especial, pela conseqüente aquisição de foro privilegiado pelo então investigado (conversa de 16/03/2016).

Os áudios foram usados politicamente para macular a imagem pública da presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, sendo a divulgação massificada por vários órgãos de imprensa, sustentando-se a tese de que a nomeação dele como ministro ocorrera exclusivamente para lhe garantir foro privilegiado.

Não sendo possível neste artigo abordar todos os desdobramentos destes fatos, mostra-se importante ao menos registrar que o ex-presidente Lula foi impedido de assumir o ministério e, portanto, não adquiriu foro privilegiado, permanecendo ao alcance da Lava-jato, o que parece ter sido a pretensão inicial do vazamento dos áudios.

Algumas das mensagens trocadas entre Dallagnol e Moro parecem apontar uma preocupação obsessiva, nutrida por ambos, para fixar a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para tramitação da futura ação penal movida contra o ex-presidente Lula.

Este assunto foi abordado em uma das conversas quando Moro anunciou, reservadamente, ao procurador que o conflito de competência com São Paulo relativo à ação do triplex teria solução favorável a Curitiba, mantendo o ex-presidente na mira de ambos (conversa em 13/03/2016), e, indicando que o ex-juiz já tinha conhecimento de qual seria a decisão do STF a esse respeito.

Todas essas medidas e preocupações compartilhadas entre o ex-juiz e o procurador-chefe da operação Lava Jato somente se tornariam efetivas com a ação penal movida contra o ex-presidente. No entanto, sem elementos palpáveis de enriquecimento ilícito, sem sequer indícios probatórios de envolvimento direto de Lula nos esquemas de corrupção investigados, a estratégia adotada foi de buscar relacionar o apartamento no Guarujá e o sítio em Atibaia, como propinas recebidas de empreiteiras por Lula, tendo por origem contratos da Petrobrás.

Glenn Edward Greenwald, advogado e jornalista norte-americano. Um dos fundadores do The Intercept.

Aparentemente, pelas mensagens divulgadas, nem Deltan Dallagnol convenceu-se da versão levada ao público na entrevista coletiva e expressada na denúncia oferecida contra o ex-presidente. Ocorre, no entanto, que se não se fizesse relação direta do apartamento com a Petrobrás, ele não seria o promotor natural para a investigação e Sérgio Moro não seria o juiz a julgar o ex-presidente. Foi necessário, portanto, a ação combinada entre o procurador da república e o ex-juiz para garantir que ambos processassem e julgassem o ex-presidente Lula.

Como se percebe nada há de normal, banal ou corriqueiro no teor destes diálogos! Houve, no entanto, quem dissesse tratar-se de uma situação comum nos meios jurídicos, a despeito de ser vedada pela lei.

Não seria verdadeiro negar a existência de situações em que o (a) magistrado (a) age em desacordo com os preceitos legais e, pelos mais variados motivos, atua propositadamente em benefício de uma das partes do processo judicial, decidindo sem isenção e de forma parcial. São acontecimentos de evidente violação ética e de quebra da confiança outorgada pelo Estado no representante da magistratura e que constituem atos ilegais, compondo os subterrâneos do mundo jurídico e que ao emergirem devem sofrer as consequências legais.

Sempre que gente como Virgílio – nosso árbitro do filme de Giorgetti – é desmascarada a conduta esperada dos dirigentes do futebol é a de punir o fato com a aplicação das sanções previstas em lei, inclusive, na esfera criminal. Do contrário, passa-se a sensação de inexistir seriedade no esporte, retirando sua credibilidade diante do público.

Comportamento similar é o mínimo a se esperar do Poder Judiciário em relação aos processos judiciais onde o ex-juiz Sérgio Moro agiu sem isenção e de maneira parcial, perseguindo os réus até a efetivação de suas prisões. Sem a declaração de nulidade em todos os processos, o Poder Judiciário não conferirá a resposta institucional necessária a fim de resguardar a credibilidade ainda remanescente do sistema de justiça do país.    

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