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Histórias de uma mulher negra que lidera um grupo de maioria não negra

Temos que estar preparadas para questionamentos sobre nossa competência qualquer justificativa para tanto

Annalise Keating interpretada por Viola Davis em cena de How to get away with murder. Foto: Divulgação
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Atuei como Coordenadora Pedagógica em duas escolas e certamente só ocupei os cargos porque possuía um título da aprovação em concurso público, que vejo como um processo extremamente competitivo e classificatório, mas mesmo assim, nas duas vezes ocorreram tentativas de interditos para que eu não os exercesse. Eventualmente imagino que se o critério fosse o da indicação, hoje estaria escrevendo uma outra história.

Em ambas escolas ocorreu orientação da supervisão escolar junto direção sobre a Constituição garantir prioridade aos os candidatos aprovados em concurso, na ocupação de cargos transitoriamente vagos. Portanto, era um direito Constitucional. Me recordo que na primeira, a diretora solicitou que eu não comparecesse a reunião do colegiado que deliberaria sobre a escolha da profissional para a vaga. A alegação foi que o grupo de professores já me conhecia. Atuava há três anos como professora de Educação Física no espaço e eram meus colegas.

Ela justificou que todos precisariam ser informados com antecedência e preparados cuidadosamente para receber a notícia, pois temia que eu sofresse represálias. Eu não compareci, mesmo sabendo que o procedimento padrão seria a direção apenas comunicar o colegiado do direito de posse. Pois, não haviam outros candidatos aprovados pleiteando o cargo.

Já na segunda escola, o grupo de professores não me conhecia, mesmo assim um deles disse durante a reunião do colegiado, que o fato de eu assumir o cargo, mesmo sendo um direito Constitucional, era uma imoralidade. Defendeu que havia outra profissional na escola interessada que não foi aprovada no concurso, era conhecida de todos e com mais competência.

Eu me perguntava: quais seriam essas competências, uma vez que ele não expos ao colegiado detalhadamente sobre?

Quem seria essa profissional que não estava presente para lutar pelo que queria? Percebam como o objetivo de ambos os grupos foi o mesmo, porém as justificativas para as estratégias para interdição foram absurdamente contraditórias e confusas. Ser conhecida por um grupo foi o argumento e, em contrapartida ser uma estranha para o outro. Ambas tinham em comum uma aparência de benevolência e justiça, mas carregavam uma violência sutil.

Como eu já carregava a experiência anterior, me preparei para reagir frontalmente. Me levantei com altivez diante de todos e disse que havia concorrido com mais de 30.000 pessoas em uma prova extremamente difícil na esperança de ocupar uma vaga. Que havia entregue uma proposta de trabalho, que nenhum dos presentes havia se quer lido. Finalizei afirmando que assumiria o cargo e que sobre o que era moral ou imoral, não seria abordado por mim, momentaneamente e sim nos espaços de estudo que eu proporcionaria a todos os profissionais daquela escola, pois esta é uma das atribuições de uma Coordenadora Pedagógica.

Me lembro bem desse dia, porque foi o mesmo em que compareci na escola onde meus filhos estudavam. Era um daqueles períodos em que os responsáveis são convocados para ajustes nas documentações. Enquanto assinava os papeis, meus filhos de 7 e 3 anos se aproximaram de um garoto de idade semelhante e fizeram um convite para brincarem juntos. O garoto de pele branca respondeu ao convite com a fala: eu não brinco com vocês porque são dois pretos sujos que nunca tomam banho!

Me coloquei diante de todas as pessoas e mesmo com a secretaria lotada, exigi que a escola tomasse uma atitude imediata. Como encaminharam a situação seria necessário um outro artigo para contar. Trouxe também esse relato na perspectiva de mostrar que mulheres “negras” em cargos de liderança, não encontram trégua em momento algum em suas vidas.

Muitas vezes chegam ao trabalho tentando se recuperar de alguma violência que enfrentaram em um supermercado, em casa, na vizinhança, enfim, em qualquer outro espaço social fora do lugar onde exercem a chefia e sabem que para se manterem no cargo que ocupam, precisarão revelar competência extrema, controle emocional e sobre tudo cuidarem da aparência muito mais que outras mulheres não negras.

Aprendi que quando racistas veem mulheres negras que cuidam de sua estética, ficam confusos. Não sou psicóloga, mas acredito que talvez seja porque psiquicamente estejamos nos inconscientes como as más, feias, sujas, não confiáveis, as desumanas. Como escreveu Frantz Fanon.

Estar na coordenação de um grupo de professores não negros, sendo uma mulher negra me ensinou que após nossas ações forem incontestavelmente competentes, quer queiram, quer não, terão que engolir a seco o racismo e a vontade de colocar fogo na nossa mesa. Eu sei que às vezes sentimos medo e este sentimento não pode nos imobilizar. Ele vai nos acompanhar, mas se seguirmos em frente, venceremos o medo.

Por hora, para não deixar você curioso, volto a situação da matrícula do meu filho. Quando saímos da escola ele muito orgulhoso disse para o irmão mais velho: Você viu, a nossa mãe lutou igual um linhão! Anos depois ele aprendeu não só a pronunciar corretamente a palavra leão, mas que também não é o leão que sustenta o coletivo e sim a leoa.

Aprendeu que sua mãe era uma mulher negra que sabe que é preciso lutar como uma leoa, pois apesar do racismo e do machismo, é ela quem levará o sustento para casa. Uma leoa não pode ser paralisada pelo medo de ser caçada quando precisa caçar. Assim como as panteras negras.

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