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Existe feminismo sem luta de classes?

Preocupa a desconexão entre as duas dimensões dos conflitos sociais, a dimensão econômica e a cultural, que estão normalmente associadas

Foto: Daniel Zanini H./Flickr
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Até os anos 70, época em que o conceito de gênero passou a ser utilizado, todas as teorias feministas de destaque refletiam a influência da filosofia marxista. Isso significa que a questão de gênero era analisada sob a perspectiva da economia política, ainda que começasse a tratar de temas como o trabalho doméstico e a sexualidade.

Na medida em que corria o século XX, entretanto, o abandono da perspectiva marxista foi um fenômeno correlato à própria desilusão geral com a política visionária. A muitas feministas, a partir da experiência stalinista, a visão de Marx parecia ter se disfarçado em totalitarismo opressivo, no qual a dominação marcava o tom dos relacionamentos sociais. Mais ainda, a guerra fria entre as duas potências mundiais, Estados Unidos e União Soviética, restringiram a escolha política a um entre dois modelos que pareciam igualmente insatisfatórios.

Nesse contexto, outras teorias feministas passaram a ser forjadas, para além do marxismo. Em primeiro lugar, o existencialismo de Simone de Beauvoir. Pouco depois, as teorias psicanalíticas do feminismo, assim como as pós-estruturalistas.

Por parte dos anglófonos, o gênero passou a ser conceituado como “identidade”, da mesma forma que as “relações de gênero” foram substituídas pelo termo “diferença sexual”, por parte dos lacanianos. Isso fez com que, em ambos os casos, a análise do gênero avançasse para os campos da subjetividade e da ordem simbólica.
A pensadora Nancy Fraser defende que as demandas por reconhecimento são relativamente recentes na sociedade contemporânea. Na verdade, elas fariam parte de um processo de evolução da sociedade capitalista denominado por ela como “era pós-socialista”. O que caracteriza esse processo é uma nova configuração da ordem mundial, globalizada e multicultural, na qual as lutas por redistribuição são paulatinamente substituídas por reconhecimento, ou seja, os conflitos de classe são tendenciosamente suplantados por conflitos de status social, advindos da dominação cultural.

Isso fez com que houvesse uma mudança no centro de gravidade das políticas feministas. Anteriormente centradas na divisão sexual do trabalho, passaram a tratar de identidade e representação, causando uma espécie de subordinação de lutas sociais às lutas culturais, e das políticas de redistribuição às políticas de reconhecimento.

O que preocupa é a desconexão entre as duas dimensões dos conflitos sociais, a dimensão econômica e a cultural, que estão normalmente associadas. Há nas novas demandas dos movimentos sociais por reconhecimento de identidades culturais a minimização e não-tematização das questões referentes às desigualdades econômicas, numa ordem social globalizada e marcada por injustiças econômicas. Porém, a separação entre as dimensões econômica e cultural é falsa.

Ou seja, a mudança de foco, gerou uma dupla contradição: ao mesmo tempo em que houve uma compreensão mais ampla do que significa justiça de gênero, parece que as lutas feministas não mais serviam para enriquecer a luta por igualdade distributiva.

É importante ressaltar que, no contexto de um neoliberalismo ascendente, a ausência de perspectiva materialista, no âmbito das teorias feministas, pode estar a serviço das trágicas perdas no campo da distribuição.

Ao invés de chegar a um paradigma mais amplo e rico que pudesse englobar tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, estaríamos simplesmente trocando um paradigma truncado por outro: a economicidade truncada pelo culturalismo truncado.

Importa lembrar que a desigualdade de gênero fundamenta-se numa desigual distribuição dos bens, direitos e oportunidade, o que é baseado numa construção social que historicamente retirou a perspectiva das mulheres como referência para a construção dos consensos sociais. Essa realidade resultou num desnivelamento da situação das mulheres em relação aos homens, bem como numa situação de opressão, já que estas foram, ainda que com alguma resistência, praticamente anuladas dos processos de participação da sociedade.

Quando a desigualdade de gênero se justifica pela má distribuição, este se equipara a outra categoria de análise – a classe. Compreende-se, assim, como a inserção do gênero no modo de produção capitalista gera a apropriação das diferenças biológicas entre homens e mulheres, com o fim de dar sustentação à divisão fundamental entre trabalho “produtivo” pago e trabalho doméstico “reprodutivo” não pago, sendo este último designado como responsabilidade primária das mulheres[1].

Assim, não foi uma simples “tendência” o fato de os homens exercerem atividades nas fábricas e indústrias, além de outras ocupações profissionais historicamente conhecidas como espaços de trabalho produtivo, e, portanto, melhor remunerado, enquanto que às mulheres coube desempenhar atividades administrativas e domésticas, tidas historicamente como atividades de menos valor, portanto menos remuneradas e tipicamente femininas.

Leia também: Muito prazer! Nós somos as Sororas e viemos falar de Sororidade!

Quando, entretanto, o sexismo se configura por meio da supervalorização de comportamentos e padrões culturais masculinos, e da conseqüente desvalorização dos comportamentos e padrões culturais associados e esperados das mulheres, estamos diante do que se pode chamar de reconhecimento equivocado. Portanto, de uma espécie de violência simbólica, que, inserida no âmbito das construções culturais, institucionaliza-se e influencia todas as dimensões da vida em sociedade.

Essas duas expressões do sexismo provocam, na visão de Fraser, violências específicas contra as mulheres, embora ambas permaneçam inseridas no bojo das desigualdades de gênero. Isso quer dizer que são perspectivas independentes uma da outra, embora interajam entre si, de forma que as razões da má distribuição não necessariamente são as mesmas do reconhecimento equivocado.

O movimento feminista teve de lutar para desconstruir a injustiça econômica através da denúncia de que o gênero estrutura a divisão fundamental entre trabalho produtivo e assalariado e trabalho reprodutivos, doméstico e não-assalariado, típicos de mulher.

Além disso, o gênero também estrutura a divisão de trabalho entre ocupações profissionais e bem pagas dominadas por homens e o trabalho doméstico, mal pago, dominado por mulheres. Como solução para isso, a transformação da economia política deveria eliminar a exploração, a marginalização e a privação específica do gênero, o que significa eliminar as diferenças e especificidades do gênero.

Se a questão do gênero envolvesse somente isso, estaria resolvida. Contudo, gênero não é só uma diferenciação baseada na política econômica, mas também em padrões culturais. Isso é, existe uma particularidade em ser mulher que não deveria ser subsumida a um padrão cultural que privilegia as práticas, as formas de comunicação e interpretação masculinas.

Assim, para combater a injustiça cultural, também é necessária uma desconstrução do androcentrismo (padrões culturais que privilegiam as características da masculinidade), o qual caminha junto com o sexismo cultural (a desvalorização e depreciação de coisas vistas como “femininas”, tomadas como emotivas e irracionais). A solução aqui está baseada na afirmação das diferenças de gênero e na valorização das práticas ligadas ao feminino.

Laura Rodrigues Benda foi Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho do TRT da 2ª Região. É diretora de direitos humanos da AMATRA 2 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região – biênio 2018/2020) e Presidenta da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Escreve na coluna Sororidade em Pauta.

[1] N. Fraser, Políticas Feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero in Gênero, Democracia e Sociedade Brasileira, Editora 34, 2002, p. 64.
Foto: Daniel Zanini H./Flickr

Até os anos 70, época em que o conceito de gênero passou a ser utilizado, todas as teorias feministas de destaque refletiam a influência da filosofia marxista. Isso significa que a questão de gênero era analisada sob a perspectiva da economia política, ainda que começasse a tratar de temas como o trabalho doméstico e a sexualidade.

Na medida em que corria o século XX, entretanto, o abandono da perspectiva marxista foi um fenômeno correlato à própria desilusão geral com a política visionária. A muitas feministas, a partir da experiência stalinista, a visão de Marx parecia ter se disfarçado em totalitarismo opressivo, no qual a dominação marcava o tom dos relacionamentos sociais. Mais ainda, a guerra fria entre as duas potências mundiais, Estados Unidos e União Soviética, restringiram a escolha política a um entre dois modelos que pareciam igualmente insatisfatórios.

Nesse contexto, outras teorias feministas passaram a ser forjadas, para além do marxismo. Em primeiro lugar, o existencialismo de Simone de Beauvoir. Pouco depois, as teorias psicanalíticas do feminismo, assim como as pós-estruturalistas.

Por parte dos anglófonos, o gênero passou a ser conceituado como “identidade”, da mesma forma que as “relações de gênero” foram substituídas pelo termo “diferença sexual”, por parte dos lacanianos. Isso fez com que, em ambos os casos, a análise do gênero avançasse para os campos da subjetividade e da ordem simbólica.
A pensadora Nancy Fraser defende que as demandas por reconhecimento são relativamente recentes na sociedade contemporânea. Na verdade, elas fariam parte de um processo de evolução da sociedade capitalista denominado por ela como “era pós-socialista”. O que caracteriza esse processo é uma nova configuração da ordem mundial, globalizada e multicultural, na qual as lutas por redistribuição são paulatinamente substituídas por reconhecimento, ou seja, os conflitos de classe são tendenciosamente suplantados por conflitos de status social, advindos da dominação cultural.

Isso fez com que houvesse uma mudança no centro de gravidade das políticas feministas. Anteriormente centradas na divisão sexual do trabalho, passaram a tratar de identidade e representação, causando uma espécie de subordinação de lutas sociais às lutas culturais, e das políticas de redistribuição às políticas de reconhecimento.

O que preocupa é a desconexão entre as duas dimensões dos conflitos sociais, a dimensão econômica e a cultural, que estão normalmente associadas. Há nas novas demandas dos movimentos sociais por reconhecimento de identidades culturais a minimização e não-tematização das questões referentes às desigualdades econômicas, numa ordem social globalizada e marcada por injustiças econômicas. Porém, a separação entre as dimensões econômica e cultural é falsa.

Ou seja, a mudança de foco, gerou uma dupla contradição: ao mesmo tempo em que houve uma compreensão mais ampla do que significa justiça de gênero, parece que as lutas feministas não mais serviam para enriquecer a luta por igualdade distributiva.

É importante ressaltar que, no contexto de um neoliberalismo ascendente, a ausência de perspectiva materialista, no âmbito das teorias feministas, pode estar a serviço das trágicas perdas no campo da distribuição.

Ao invés de chegar a um paradigma mais amplo e rico que pudesse englobar tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, estaríamos simplesmente trocando um paradigma truncado por outro: a economicidade truncada pelo culturalismo truncado.

Importa lembrar que a desigualdade de gênero fundamenta-se numa desigual distribuição dos bens, direitos e oportunidade, o que é baseado numa construção social que historicamente retirou a perspectiva das mulheres como referência para a construção dos consensos sociais. Essa realidade resultou num desnivelamento da situação das mulheres em relação aos homens, bem como numa situação de opressão, já que estas foram, ainda que com alguma resistência, praticamente anuladas dos processos de participação da sociedade.

Quando a desigualdade de gênero se justifica pela má distribuição, este se equipara a outra categoria de análise – a classe. Compreende-se, assim, como a inserção do gênero no modo de produção capitalista gera a apropriação das diferenças biológicas entre homens e mulheres, com o fim de dar sustentação à divisão fundamental entre trabalho “produtivo” pago e trabalho doméstico “reprodutivo” não pago, sendo este último designado como responsabilidade primária das mulheres[1].

Assim, não foi uma simples “tendência” o fato de os homens exercerem atividades nas fábricas e indústrias, além de outras ocupações profissionais historicamente conhecidas como espaços de trabalho produtivo, e, portanto, melhor remunerado, enquanto que às mulheres coube desempenhar atividades administrativas e domésticas, tidas historicamente como atividades de menos valor, portanto menos remuneradas e tipicamente femininas.

Quando, entretanto, o sexismo se configura por meio da supervalorização de comportamentos e padrões culturais masculinos, e da conseqüente desvalorização dos comportamentos e padrões culturais associados e esperados das mulheres, estamos diante do que se pode chamar de reconhecimento equivocado. Portanto, de uma espécie de violência simbólica, que, inserida no âmbito das construções culturais, institucionaliza-se e influencia todas as dimensões da vida em sociedade.

Essas duas expressões do sexismo provocam, na visão de Fraser, violências específicas contra as mulheres, embora ambas permaneçam inseridas no bojo das desigualdades de gênero. Isso quer dizer que são perspectivas independentes uma da outra, embora interajam entre si, de forma que as razões da má distribuição não necessariamente são as mesmas do reconhecimento equivocado.

O movimento feminista teve de lutar para desconstruir a injustiça econômica através da denúncia de que o gênero estrutura a divisão fundamental entre trabalho produtivo e assalariado e trabalho reprodutivos, doméstico e não-assalariado, típicos de mulher.

Além disso, o gênero também estrutura a divisão de trabalho entre ocupações profissionais e bem pagas dominadas por homens e o trabalho doméstico, mal pago, dominado por mulheres. Como solução para isso, a transformação da economia política deveria eliminar a exploração, a marginalização e a privação específica do gênero, o que significa eliminar as diferenças e especificidades do gênero.

Se a questão do gênero envolvesse somente isso, estaria resolvida. Contudo, gênero não é só uma diferenciação baseada na política econômica, mas também em padrões culturais. Isso é, existe uma particularidade em ser mulher que não deveria ser subsumida a um padrão cultural que privilegia as práticas, as formas de comunicação e interpretação masculinas.

Assim, para combater a injustiça cultural, também é necessária uma desconstrução do androcentrismo (padrões culturais que privilegiam as características da masculinidade), o qual caminha junto com o sexismo cultural (a desvalorização e depreciação de coisas vistas como “femininas”, tomadas como emotivas e irracionais). A solução aqui está baseada na afirmação das diferenças de gênero e na valorização das práticas ligadas ao feminino.

Laura Rodrigues Benda foi Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho do TRT da 2ª Região. É diretora de direitos humanos da AMATRA 2 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região – biênio 2018/2020) e Presidenta da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Escreve na coluna Sororidade em Pauta.

[1] N. Fraser, Políticas Feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero in Gênero, Democracia e Sociedade Brasileira, Editora 34, 2002, p. 64.
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