Justiça

Entre o direito e a política, o STF estremece

No julgamento da reeleição de Maia e Alcolumbre, o falso moralismo, com pitadas de cinismo, compuseram o cardápio do dia no STF

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A história começa de um jeito surreal: duas hipotéticas reeleições dos atuais presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado Federal, Davi Alcolumbre (DEM-AP), viraram objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6524, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Hipotética porque as disputas pelas presidências das Casas Legislativas somente ocorrerão em fevereiro de 2021 e o próprio Maia, principal alvo da controvérsia, dado seu posicionamento contrário ao atual governo, afirmou nunca ter pretendido a reeleição.

A par disso, as articulações nos bastidores já se fazem, obviamente, presentes. Uma generalizada preocupação abateu sobretudo os aliados de Jair Bolsonaro, em especial pelo momento de crise sistemática, marcada pela vitória de Joe Biden sobre Donald Trump, nos EUA, e, ainda, pelo fracasso do bolsonarismo, medido nas urnas durante as eleições municipais de 2020.

O colapso, cada vez mais evidente, preocupa sobretudo por um possível estopim, que poderá ter andamento em 2021, quanto aos processos de impeachment contra os crimes de responsabilidade do Presidente, considerando o poder de controle da agenda por parte da presidência da Câmara dos Deputados Federais.

Como argumento da ADI, o PTB pediu a confirmação do texto da Constituição Federal, no artigo 57, que afirma: “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. A razão mais evidente era evitar a hipotética reeleição de Maia, com possíveis consequências indesejáveis, potencialmente reservadas para Bolsonaro, para o ano de 2021.

O julgamento teve início na sexta-feira, dia 04/12/2020, finalizado em 06/12/2020. O relator da ação, Gilmar Mendes, votou contra a ADI, entendendo que a eventual reeleição de Maia ou Alcolumbre era uma questão política, não faltando respaldo jurídico, via mutação do texto constitucional.

Foi seguido, em seu entendimento, pelos votos de Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski. O placar foi mudado  com os votos de Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin e Luiz Fux. Nunes Marques divergiu em parte do relator, entendendo ser possível a reeleição de Alcolumbre e não a de Maia.

Direito geométrico 

Fux, o atual presidente do STF, votou contra a relatoria de Gilmar Mendes, falando que a regra constitucional era “direta e objetiva”, na presença de “norma constitucional plana”. Em suas palavras, não haveria como concluir pela recondução em eleições no âmbito da mesma legislatura, “sem que se negue vigência ao texto constitucional”.

Mas esse mesmo Fux, por ocasião do julgamento de prisão após segunda instância, votou contra a Constituição, ao ser favorável à prisão antes do trânsito em julgado da ação penal, embora tenha sido vencido em sua posição. Na ocasião, votaram contra o texto Constitucional, além de Fux, também Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Barroso e Cármen Lúcia.

Sem nenhum pudor, Fux negou vigência à norma constitucional, considerando os interesses políticos momentâneos, dado que o que estava em jogo era a manutenção da prisão de Lula, principal alvo da operação Lava Jato. Não obstante toda a construção semântica e hermenêutica do direito, fez-se de tolo: presunção de inocência não teria nenhuma vinculação com a ideia de prisão.

Na geometria constitucional de Fux, a norma pode até ser plana, mas se faz, às vezes, de tridimensional, para ser moldada a seu bel prazer, em inventivas formas. Como se não bastasse o cinismo, o atual presidente da Corte afirmou, recentemente, que o julgamento sobre a prisão em 2ª instância teria sido “de baixa densidade jurídica” e que o “Supremo não está em paz” quanto ao tema, que deve voltar a ser debatido no futuro. Não bastasse a plasticidade, ainda é um mau perdedor.

Cármen Lúcia diz que, quanto à reeleição, a norma é clara e o português é direto e objetivo. Fachin afirmou que o texto constitucional seria “um limite intransponível para a Jurisdição Constitucional” e, para Barroso, uma mudança no entendimento só poderia se dar via emenda constitucional. O cenário piora, ainda, com um possível comprometimento prévio de Barroso e Fux com relação ao voto a favor da relatoria de Gilmar, acolhendo a tese de mutação constitucional no caso da ADI 6524.

Carnaval pitoresco

Apesar das considerações dos ministros, nesse momento, aparentemente sensatas, não houve pudor para, tantas e reiteradas vezes, desentenderem-se do português “direto e objetivo” das normas constitucionais, transporem os “limites claros” da Jurisdição Constitucional ou, ainda, invadirem as competências do poder legislativo, fazendo decisões judiciais, subitamente, fingirem-se de emendas, como em um Carnaval pitoresco.

Se, de um lado, alguns ministros não têm nenhuma vergonha ao atuarem contra o texto constitucional, como ao permitirem a prisão em segunda instância e, depois, pintarem um moralismo do positivista sensato que nunca foram, de outro lado, os ditos mais garantistas também podem, sem nenhuma vergonha, conferirem às normas constitucionais mais elasticidade do que poderia desejar qualquer garantista sensato.

Quanto mais o STF vai deixando de ser uma instância jurídica para se tornar uma instância política às avessas, mais suas forças se perdem, mais elas se esfacelam.

O português faz manobras indizíveis no palco do picadeiro falido do circo, ao mesmo tempo em que a segurança jurídica se torna uma velha história do passado, um ator que já esteve, algum dia, em cena. E mesmo quando os votos podem nos satisfazer, em um nível pessoal, essa mesma elasticidade pode ser usada, amanhã, contra nossos interesses, daí o papel contramajoritário do direito, que infelizmente vai se tornando mais longínquo, um grito oco no espaço-tempo.

As luzes da Constituição, nos olhares tortos de seus guardiões, vão se apagando como um fim de espetáculo. A “vanguarda iluminista”, para falar com Barroso, vai se deteriorando e perdendo a bilheteria da vez. Uma estratégia institucional suicidária, que é mesmo um prato cheio para aqueles que se interessam por uma imagem do Supremo se arruinando. Bastarão um soldado e um cabo — poderão dizer!

Quando o direito rompe com sua homeostase, perde seu genuíno papel. Nem aqui nem acolá, o STF agoniza.

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