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‘Encrespecer’ o sistema de justiça: uma utopia possível

Espera-se que a OAB, honrando seu compromisso constitucional, rememore que os que negaram diploma a Luiz Gama foram varridos pela história

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Como a estética dos nossos cabelos se relaciona com o sistema de justiça e com as práticas de subalternização engendradas pelo direito? Uma das formas mais simbólicas de dominação racial está na estética e no poder disciplinar exercido sobre os cabelos que remetessem a uma afrocentricidade.

Mulheres e homens negros, entre nós, até hoje, ainda são “educados” a naturalizar a homogeneização capilar: isso me faz divagar e analogizar com o que aprendi na minha “desformação” jurídica. Esse quadro vem mudando bastante com as novas gerações e possibilitado um impacto inclusive nas gerações passadas de mulheres e homens negros, obrigados a seguir a estética de “boa aparência”: as primeiras, através do alisamento, e os segundos, por meio da raspagem (corte máximo possível) de seus cabelos, em uma espécie de castração, uniformização e reconhecimento da inferioridade de suas subjetividades.

As instituições do sistema de justiça brasileiras não fogem a esse padrão. Pelo contrário, reforçam-no cotidianamente. Nesse sentido, usamos a analogia da estética capilar para entender como tal sistema “desfunciona”, desprestigiando-se todas as práticas e perspectivas de justiças que busquem enscrepecê-lo. As instituições do sistema de justiça, assim como o padrão capilar predominante, exaltam uma espécie de “lisidez” e “loirização” na aplicação do direito, os quais podem ser representados no sempre requentado princípio da igualdade formal, o qual vem sendo usado como álibi simbólico desde a Constituição de 1824: “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um” (art. 179, XIII). Não é difícil perceber que, entre nós, constitucionalmente, o princípio da igualdade nasce exaltando a proteção dos privilegiados, o castigo dos subordinados e a “meritez” baseada na pilhagem.

 

A Constituição de 1891, performando, de maneira caricata, modernidade jurídica, sintetizou tal princípio dizendo que “Todos são iguaes perante a lei” (art. 72, § 2º). É como se quisesse dizer que todos os cabelos são iguais: “portanto, crespos, devem ser alisados ou raspados; vocês são muito complexos para um sistema que só permite uma lógica jurídica, lisa, loira, logo, reta e imparcial. Persistindo a insubalternização, o ferro quente, a tesoura e a navalha agirão como super ego às tortuosidades e imperfeições”.

Dessa forma, assim como essa analogia capilar, as instituições do sistema de justiça não permitiram, obviamente, que pessoas negras ingressassem em seus espaços de saber e poder, em lógica que se repete desde o exemplo de Luiz Gama, impedido de se bacharelar na USP. Por outro lado, as pessoas negras foram e são as maiores vítimas da disciplina da tesoura brancocêntrica: tal como cabelos crespos, negros(as) foram tidos como indisciplinados, demasiadamente enrolados, sujos, não confiáveis, rebeldes e desconformes aos padrões legalmente estabelecidos pelo sistema de direito. O único espaço tolerado estava atrelado ao exotismo ou a uma lobotomizante performance de branquidade.

Cabelos negros, crescidos, encrespados, com vigor ou armados são tidos como um violento ato de insubordinação, pois tocam no tabu colonial da dominação racial, despertando a fragilidade branca, iletrada em qualquer perspectiva, inclusive jurídica, que não seja a sua.

É necessário repensar o sistema de justiça, inclusive as violências que ele legitima todos os dias contra os sujeitos negros, com o aprisionamento em massa, assassínio racializado de sua infância e juventude, negação reiterada dos direitos individuais e sociais e todas as demais práticas que o racismo estrutural, em suas diversas formas, naturalizou.

Desnaturalizemos o racismo estrutural, assim como temos desnaturalizado a chapinha e o corte zero à máquina. Mulheres e homens negros têm muito a contribuir com as instituições do sistema de justiça. Assim como nossos crespos, somos diversos e temos variadas opções para reformular a lógica e a gramática como o direito se apresenta. Em um sistema obsoleto, podemos contribuir com novas cosmo-percepções jurídicas.

A recente sinalização da OAB em discutir uma maior participação negra em seu sistema pode ser uma valiosa encruzilhada para abrir fissuras nesse sistema de justiça arcaicamente racializado, encrespando as perspectivas em torno do direito e da justiça. Espera-se que a OAB, honrando seu compromisso constitucional de ser indispensável à Justiça, rememore que os que negaram diploma a Luiz Gama estão sendo varridos pela História, tal qual um pó incômodo que tira o brilho de uma tela. Portanto, reconhecer a necessidade de participação mínima de 30% de negros em seus espaços não é um sinal de fragilidade da OAB; contrariamente, significa que a Instituição permanece fiel ao compromisso constitucional de velar pelos objetivos fundamentais previstos na Constituição.

Como a estética dos nossos cabelos se relaciona com o sistema de justiça e com as práticas de subalternização engendradas pelo direito? Uma das formas mais simbólicas de dominação racial está na estética e no poder disciplinar exercido sobre os cabelos que remetessem a uma afrocentricidade.

Mulheres e homens negros, entre nós, até hoje, ainda são “educados” a naturalizar a homogeneização capilar: isso me faz divagar e analogizar com o que aprendi na minha “desformação” jurídica. Esse quadro vem mudando bastante com as novas gerações e possibilitado um impacto inclusive nas gerações passadas de mulheres e homens negros, obrigados a seguir a estética de “boa aparência”: as primeiras, através do alisamento, e os segundos, por meio da raspagem (corte máximo possível) de seus cabelos, em uma espécie de castração, uniformização e reconhecimento da inferioridade de suas subjetividades.

As instituições do sistema de justiça brasileiras não fogem a esse padrão. Pelo contrário, reforçam-no cotidianamente. Nesse sentido, usamos a analogia da estética capilar para entender como tal sistema “desfunciona”, desprestigiando-se todas as práticas e perspectivas de justiças que busquem enscrepecê-lo. As instituições do sistema de justiça, assim como o padrão capilar predominante, exaltam uma espécie de “lisidez” e “loirização” na aplicação do direito, os quais podem ser representados no sempre requentado princípio da igualdade formal, o qual vem sendo usado como álibi simbólico desde a Constituição de 1824: “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um” (art. 179, XIII). Não é difícil perceber que, entre nós, constitucionalmente, o princípio da igualdade nasce exaltando a proteção dos privilegiados, o castigo dos subordinados e a “meritez” baseada na pilhagem.

 

A Constituição de 1891, performando, de maneira caricata, modernidade jurídica, sintetizou tal princípio dizendo que “Todos são iguaes perante a lei” (art. 72, § 2º). É como se quisesse dizer que todos os cabelos são iguais: “portanto, crespos, devem ser alisados ou raspados; vocês são muito complexos para um sistema que só permite uma lógica jurídica, lisa, loira, logo, reta e imparcial. Persistindo a insubalternização, o ferro quente, a tesoura e a navalha agirão como super ego às tortuosidades e imperfeições”.

Dessa forma, assim como essa analogia capilar, as instituições do sistema de justiça não permitiram, obviamente, que pessoas negras ingressassem em seus espaços de saber e poder, em lógica que se repete desde o exemplo de Luiz Gama, impedido de se bacharelar na USP. Por outro lado, as pessoas negras foram e são as maiores vítimas da disciplina da tesoura brancocêntrica: tal como cabelos crespos, negros(as) foram tidos como indisciplinados, demasiadamente enrolados, sujos, não confiáveis, rebeldes e desconformes aos padrões legalmente estabelecidos pelo sistema de direito. O único espaço tolerado estava atrelado ao exotismo ou a uma lobotomizante performance de branquidade.

Cabelos negros, crescidos, encrespados, com vigor ou armados são tidos como um violento ato de insubordinação, pois tocam no tabu colonial da dominação racial, despertando a fragilidade branca, iletrada em qualquer perspectiva, inclusive jurídica, que não seja a sua.

É necessário repensar o sistema de justiça, inclusive as violências que ele legitima todos os dias contra os sujeitos negros, com o aprisionamento em massa, assassínio racializado de sua infância e juventude, negação reiterada dos direitos individuais e sociais e todas as demais práticas que o racismo estrutural, em suas diversas formas, naturalizou.

Desnaturalizemos o racismo estrutural, assim como temos desnaturalizado a chapinha e o corte zero à máquina. Mulheres e homens negros têm muito a contribuir com as instituições do sistema de justiça. Assim como nossos crespos, somos diversos e temos variadas opções para reformular a lógica e a gramática como o direito se apresenta. Em um sistema obsoleto, podemos contribuir com novas cosmo-percepções jurídicas.

A recente sinalização da OAB em discutir uma maior participação negra em seu sistema pode ser uma valiosa encruzilhada para abrir fissuras nesse sistema de justiça arcaicamente racializado, encrespando as perspectivas em torno do direito e da justiça. Espera-se que a OAB, honrando seu compromisso constitucional de ser indispensável à Justiça, rememore que os que negaram diploma a Luiz Gama estão sendo varridos pela História, tal qual um pó incômodo que tira o brilho de uma tela. Portanto, reconhecer a necessidade de participação mínima de 30% de negros em seus espaços não é um sinal de fragilidade da OAB; contrariamente, significa que a Instituição permanece fiel ao compromisso constitucional de velar pelos objetivos fundamentais previstos na Constituição.

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