3ª Turma

E agora José, João, Antônio, Maria…?

Estamos falando de uma liberdade econômica que será para quem mesmo?

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Reza uma lenda (ou seria uma piada sem graça?) que um grupo de cientistas fez um experimento com uma aranha, arrancando-lhe as patas, uma a uma. À medida em que cruelmente iam retirando as pernas da aranha, os cientistas ordenavam à aranha para que andasse, ao que ela obedecia, ainda que manca e com um grau de dificuldade cada vez maior. Até que, após amputado o último de seus pequenos membros, os cientistas, mais uma vez, exigiram que ela andasse. Ao observar que ela permanecia estática, sem condições de executar o comando verbal, os cientistas escreveram no relatório: “sem as patas as aranhas se tornam surdas”.

Quando assistimos a aprovação da Medida Provisória 881/19, batizada de MP da “Liberdade Econômica” (sim, entre aspas mesmo), querendo nos fazer crer numa retirada de direitos como se fosse algo bom, me lembrei desta história. Mais uma vez está sendo jogado no ombro do trabalhador, o ônus de decisões que atendem ao capital. Em tão pouco tempo, vemos muitas conquistas da classe trabalhadora se derreterem como queijo na chapa quente. Um retrocesso sem precedentes. Não restam dúvidas de que a MP 881 é um verdadeiro Frankenstein, tal qual aquele ser medonho extraído das páginas da famosa obra que leva o mesmo nome. Sob a prerrogativa de desburocratização da economia, o que se vê é uma verdadeira história de terror, principalmente para os trabalhadores, que mais uma vez têm seus direitos atacados. É realmente de assombrar.

O que inicialmente era um texto com 19 artigos se tornou uma imensa colcha de retalhos ao sair da Comissão Mista da Câmara dos Deputados, com mais de 50 itens. Não menos grave foi a aprovação da medida pelo Senado, no último dia 21, com 20 artigos que alteram diversos dispositivos legais nos âmbitos do Código Civil, Código de Defesa do Consumidor e Consolidação das Leis do Trabalho. Como se não bastasse, alterações nas áreas de Direito Tributário, Comercial, Ambiental e Urbanístico.

Um conteúdo, portanto, muito mais vinculado à precarização das condições de trabalho e exploração do trabalhador do que à apregoada “liberdade econômica”.

Editada em 30 de abril deste ano para marcar os 100 primeiros dias do governo Bolsonaro e com o objetivo de reduzir a burocracia e viabilizar um novo modelo de negócios, está muito claro que o texto aprovado nada mais é do que uma continuação da Reforma Trabalhista iniciada no governo Temer. Desde que foi anunciada, a dita reforma só fez escancarar e legitimar o descumprimento da legislação trabalhista, enfraquecer a fiscalização das empresas e dificultar a busca de direitos na Justiça do Trabalho.

Muitas são as alterações propostas pela MP que afetam diretamente a camada de trabalhadores deste país. Podemos começar pela Carteira de Trabalho Digital, que complica o acesso às informações do contrato de trabalho para um grande número de excluídos digitais. Segundo pesquisa do IBGE de 2016, ainda existem mais de 60 milhões de pessoas que sequer usam a internet. O que então, dizer da flexibilização da jornada e do horário de trabalho? Além de uma evidente tentativa de acabar com o pagamento das horas extras, tem-se o impacto da exigência de jornadas excessivas na saúde e no comprometimento do convívio social e familiar, para dizer apenas o mais óbvio.

O texto também torna facultativa a criação das CIPA’s, para micro e pequenas empresas ou locais de obras com menos de 20 trabalhadores, e extingue a regra da responsabilidade solidária das empresas de um determinado grupo econômico, o que expõe ainda mais o trabalhador à eventual inadimplência do empregador.

Além disso, o texto da MP dificulta a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, medida bastante utilizada na Justiça do Trabalho para coibir fraudes e garantir o cumprimento das decisões judiciais.

Como se já não bastassem as alterações acima citadas, a MP 881/19 também traz mudanças relativas ao registro de jornada, como por exemplo, a dispensa da fixação de quadro de horário geral, a obrigatoriedade de controle de ponto apenas para empresas com mais de 20 empregados e ainda a permissão do registro de jornada por exceção em que a anotação da entrada e saída do empregado só é feita se houver extrapolação do expediente, atrasos, licenças, faltas e coisas do tipo. 

Medidas que notadamente lançam homens e mulheres trabalhadores brasileiros na escuridão e enfraquecem a Justiça do Trabalho não a estariam matando por inanição? Como na história da aranha, não parece mais fácil extirpar os poderes da Justiça do Trabalho para depois acusá-la de ineficiente e, consequentemente, dispensável? Sem direitos o empregado trabalhará mais e certamente, ganhará menos. Assim, sem tempo e com menos dinheiro, como vai movimentar a economia? Estamos falando de uma liberdade econômica que será para quem mesmo?

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