CartaCapital
Divulgação de imagens de Pezão em presídio é show inconstitucional
Diversos meios de comunicação divulgaram cenas que retratavam a participação da citada autoridade na cerimônia de hasteamento da bandeira


A partir de recentes eventos relacionados com a prisão do governador Luís Fernando Pezão, mostra-se perfeitamente possível cravar que nos encontramos muitos bem distantes do estágio civilizatório prometido pelo Texto Constitucional.
Ao contrário do que já se sucedeu em outros momentos da nossa história, quando movimentos ditos como revolucionários apearam do poder os seus opositores ou então se valeu da saída constitucional do impedimento, o Estado do Rio de Janeiro experimentou recentemente a insólita situação de afastamento do seu Chefe do Executivo em razão de decisão judicial que impôs o seu aprisionamento cautelar.
Após a efetivação da decisão que impôs a prisão preventiva e da sua inserção no sistema prisional, os diversos meios de comunicação divulgaram cenas que retratavam a participação da citada autoridade na cerimônia de hasteamento da bandeira.
A divulgação do culto cívico nada tem de inofensivo, ao contrário do que inicialmente poderia ser assinalado em uma leitura superficial. Independentemente da existência de sentimentos favoráveis ou contrários quanto ao político que agora se encontra preso, é imprescindível destacar que se trata de pessoa portadora de patrimônio jurídico composto por direitos e garantias fundamentais. Dentre do seu acervo, chama atenção o fato de não ter contra si qualquer decisão condenatória definitiva, o que indica para a necessidade em se assegurar a fruição do estado de inocência.
Aliás, quanto a esse multifacetado direito fundamental, que cada vez mais é menosprezado como resultado da política de desvalorização dos direitos humanos, é de suma relevância apontar para a existência da regra de tratamento. No que se refere a esse aspecto, oportunas se mostram as considerações de Aury Lopes Júnior:
“Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) dor réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial.”[i]
Dessa forma, o agir desenvolvido pelos diversos meios de comunicação, isto é, a divulgação da participação do político preso no cerimonial de hasteamento da bandeira em unidade prisional, violaram a regra de tratamento que decorre do estado de inocência e essa vulneração indica a notória dificuldade da sociedade brasileira em reconhecer o valor civilizatória que representam as normas jurídicas que tutelam as pessoas que sofrem a persecução penal.
Diga-se ainda mais. Essa verdadeira atuação sensacionalista das empresas de televisão desprezou a modelagem constitucional e que se encontra prevista no seu artigo 221[ii]. Qual é a relevância na divulgação daquela cena? Demonstrar o patriotismo do governador preso? Ao participar do próximo hasteamento da bandeira, algum canal televisivo informará se Pezão calçava as “originais” e qual seria o número de suas havainas?
Não se despreza o fato de que em uma sociedade do espetáculo a importância que adquire as imagens, vez que, nas lições de Debord[iii], são elas que permeiam as relações sociais. A questão é que em um cenário de incompreensão dos direitos e garantias fundamentais a divulgação de imagens visam tão-somente a violação de patrimônio jurídico. Retoma-se, assim, ao momento em que o suplício do condenado se dava de maneira pública, vide o ocorrido em 02 de março de 1757 e relatado por Foucault:
“Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atazanado tiraram cada qual do bolso e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco no corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é,: a do lado direito por primeiro, e depois a outra, a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro.”[iv]
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E que não se repute como espetáculo exclusivo da sociedade francesa, eis que o caráter público também se observa na condenação imposta pela Santa Inquisição:
“Aquela magnífica peça teatral paralisou toda a colônia. As pessoas percorreram mais de 1.500 quilômetros para assistir a ela, então ‘parecia que toda Nova Espanha ficara despovoada e viera para [a Cidade do] México. Os espectadores se penduravam em cercas, andaimes, coches e balcões, ocuparam 16 mil assentos diante do cadafalso, gritando e aplaudindo, atraídos pela religiosidade do acontecimento e fascinados com os prisioneiros. Quando os condenados subiram ao cadafalso para ouvir as sentenças, o frei jesuíta Matias de Bocanegra maravilhou-se com os feitos do inquisidor-geral Mañozca.”[v]
A questão toda é que sob a “justificativa” de informar à sociedade se realiza processo de estigmatização indevido e inconstitucional. O puro exibicionismo deveria ser repudiado. A existência de satisfação, gozo e vingança da sociedade frente a situação experimentada por quem é considerado como um dos responsáveis pela crise financeira demonstra como é incipiente o grau de civilização da sociedade brasileira.
Os séculos passaram, práticas punitivas antigas, por serem consideradas como cruéis, não mais subsistem e sobrevieram diversas solenes proclamações de direitos. Apesar de todo esse cenário de mudanças e com o pleno funcionamento da sociedade do espetáculo, direitos e garantias fundamentais são compreendidos como óbices para uma atividade informativa. Hodiernamente, as cidades não são mais esvaziadas para acompanhar a dor alheia. A presença física da turba é substituída pelos avanços tecnológicos e, assim, a aldeia global toma conhecimento da expiação. Necessário se faz romper com o silêncio que impera e, principalmente, superar com os shows inconstitucionais de divulgações indevidas e desnecessárias. Em tempos de fúria punitivista, o cadafalso se encontra mais próximo de todos, inclusive de quem nem culpado ainda é.
Eduardo Newton é Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010) e, desde dezembro de 2010, exerce as funções de Defensor Público do estado do Rio de Janeiro.
[i] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual e sua conformidade constitucional. Volume I. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. pp. 195-196.
[ii] Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
[iii] DEBORD, Guy, A sociedade do espetáculo. 4. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017. p. 38.
[iv] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 10.
[v] GREEN, Toby. Inquisição. O Reinado do medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. p. 28.
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