3ª Turma

“Devemos lutar contra a captura do Judiciário pela direita”

Em entrevista à CartaCapital, Tarso Ramos, fala sobre Sérgio Moro, Bolsonaro e como combater a ascensão de movimentos autoritários.

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Tarso Luís Ramos investiga movimentos antidemocráticos de direita há 25 anos. Atualmente é diretor executivo da Political Research Associates, um think thank que oferece suporte à lideranças sociais e análises críticas sobre o nacionalismo branco, a direita cristã e outros opositores organizados da justiça social e econômica. Tarso também trabalhou em diversas pesquisas sobre islamofobia, anti-semitismo e misoginia. Desde as eleições presidenciais de 2017, que levaram Trump ao poder, Tarso tem sido muito requisitado pelas mais variadas organizações progressistas e é comentarista em diversos meios de comunicação norte americanos.

Tarso é filho de um pai brasileiro e de uma mãe norte-americana. Quando tinha apenas um ano de idade, seus pais fugiram do Rio de Janeiro para o exílio na cidade de Nova York. Seu pai fez parte de um coletivo que publicou “Memórias do Exílio”, a primeira coletânea de depoimentos expondo as torturas realizadas pelo regime militar e sua mãe traduziu alguns dos primeiros livros de Paulo Freire para o inglês, incluindo Pedagogia do Oprimido.

Igor Leone: Com base na sua experiência e estudos nos Estados Unidos, quais seriam as estratégias que a esquerda deveria colocar em prática para conter os avanços da extrema-direita?

Tarso Luís Ramos: O autoritarismo de direita está em ascensão não apenas no Brasil e nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Enquanto nenhum país é o mesmo, podemos identificar alguns elementos comuns que levam à falhas democráticas. A desigualdade econômica severa cria dificuldades e ressentimentos, e inclina a política em direção aos interesses das oligarquias corporativas. A ascensão dos movimentos religiosos teocráticos – com toda a sua misoginia, homofobia / transfobia e intolerância religiosa – fornece uma base de massa para a economia neoliberal e a governança repressiva. E o nacionalismo racial e étnico define a nação – “o povo” – de maneira racista e excludente, justificando a violência contra grupos marginalizados.

A resposta ao crescente autoritarismo é a democracia multirracial inclusiva, feminista, enraizada na prática da solidariedade profunda – o princípio de que, se eles atacarem qualquer um de nós, terão que lutar contra todos nós.

Eu acho que a esquerda tem três grandes desafios. A primeira é ganhar uma batalha da imaginação, precisamos criar uma ideia radicalmente inclusiva sobre quem pertence a sociedade, quem compõe “o povo”. Se perdermos a batalha para fazer um “nós” realmente grande para aqueles que definem as pessoas de maneiras altamente excludentes, será muito difícil fazer mudanças políticas e econômicas.

A segunda tarefa é bloquear a consolidação das forças da extrema direita. É difícil construir uma democracia sob o autoritarismo, então precisamos bloqueá-los para termos espaço para construir alternativas. Entre outras coisas, isso requer identificar e explorar as divisões nas coalizões da direita.

Terceiro, devemos construir a prática da solidariedade profunda e da democracia multirracial feminista em nossos movimentos, para que a escolha seja clara para nós e para todos: democracia inclusiva ou autoritarismo.

IL: Você é um defensor do abolicionismo penal e da reestruturação do sistema de justiça criminal. Quais medidas estão sendo propostas nos Estados Unidos para reduzir o encarceramento em massa?

TLR: As tecnologias do autoritarismo são altamente desenvolvidas dentro da maioria das democracias, como podemos observar em seus sistemas de exploração, opressão e controle de populações colonizadas / racializadas. E, é claro, em seus sistemas de subordinação das mulheres e pessoas não-conformes de gênero. Assim como no filme “Quase Dois Irmãos”, geralmente falamos apenas de autoritarismo quando os direitos democráticos são negados a membros relativamente privilegiados (especialmente homens) do grupo religioso, racial ou étnico dominante de uma sociedade. No entanto, é também uma característica das democracias a existência de grupos subordinados que vivem sob condições autoritárias dentro da mesma sociedade.

O sistema de justiça criminal é um dos pilares da supremacia branca nos EUA, que em sua atual expressão podemos considerar como uma forma de autoritarismo racializado.

Somos o país com a maior proporção da nossa própria população atrás das grades, e os afro-americanos são encarcerados em taxas cinco vezes maiores que os brancos. Nosso sistema carcerário, vasto e cada vez mais lucrativo, é um descendente direto da escravidão, devendo ser abolido e substituído por instituições e práticas cujos verdadeiros propósitos sejam a segurança e a justiça. (Observe que a supremacia branca também está evoluindo e que os movimentos nacionalistas brancos preferem a expulsão do que a exploração de outros grupos raciais).

Há movimentos radicais para a reforma e a abolição das prisões, focados em questões como a revogação da fiança monetária (que obriga os pobres acusados, que ainda não foram condenados por um crime, a permanecerem na prisão enquanto aguardam o julgamento ou um plea bargain) e a restaurar o direito de voto a ex-encarcerados.

Infelizmente, também estamos diante da ascensão de uma lógica de mercado neoliberal que vê o encarceramento como muito caro e defende um sistema privatizado de vigilância eletrônica no qual alguns “prisioneiros” viveriam do lado de fora, mas sob condições ainda mais extremas de vigilância do que as comunidades pobres de cor já experimentam atualmente. Esta é a agenda dos irmãos Koch para as prisões.

Tarso Luis Ramos. Foto:Political Research Associates

IL: Aqui no Brasil, nosso atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, acaba de propor ao Congresso a importação do modelo norte-americano de plea bargain, o que tem sido sido muito criticado por advogados e especialistas brasileiros. Sabemos que nos Estados Unidos o plea bargain é um dos principais fatores de encarceramento em massa, especialmente de jovens, afro-americanos e latinos. O que você diria a Sérgio Moro sobre essa proposta?

TLR:  Imagine que você é acusado de um crime do qual você é inocente. O promotor lhe oferece um prazo menor de prisão se você se declarar culpado de um crime menor, e ameaça colocá-lo na prisão o maior tempo possível, se você ousar insistir em seu direito constitucional a um julgamento. Isso é o plea bargain.

As prisões dos EUA estão cheias de pessoas que decidiram não se arriscar a ficarem presas pelo resto de suas vidas. Se você não puder contratar um advogado ou se puder racionalmente esperar enfrentar discriminação nos tribunais, o plea bargain é um plea bargain do diabo.

Sérgio Moro representa a justiça da maneira como uma prisão representa a liberdade.

No Brasil, como nos Estados Unidos, devemos lutar contra a captura do Judiciário pela direita.

IL: Eu li um artigo seu recentemente no The Abolitionist onde você escreveu sobre a relação entre misoginia e autoritarismo. Poderia falar um pouco mais sobre isso?

TLR: Em setembro de 1968, o jornalista que posteriormente se tornou político, Márcio Moreira Alves, discursou denunciando as práticas de tortura pelo regime militar brasileiro e propondo a “Operação Lysistrata” (em alusão a peça de teatro Aristófanes) – um apelo às mulheres brasileiras para que elas não fizessem sexo com homens uniformizados até que eles acabassem com os abusos e restaurassem as normas democráticas. Esse comentário satírico ofendeu tanto a masculinidade dos generais da época que desencadeou uma série de eventos que culminou no Ato Institucional 5 – o golpe dentro do golpe.

Governos autoritários utilizam a misoginia para reforçar a hierarquia patriarcal – um dos pilares do autoritarismo.

Trump afirmou que as mulheres que abortam devem ser punidas, e se gabou sobre agredir sexualmente as mulheres. A misoginia e a homofobia de Bolsonaro são notórias e ele é obcecado em denunciar o que a Direita chama de “ideologia de gênero”. Tanto no Brasil quanto nos EUA, aspirantes a presidentes autoritários receberam o forte apoio de uma ala evangélica de direita que agora está (re)impondo uma ordem patriarcal misógina.

Não há democracia sem o feminismo e o feminismo multirracial é a chave para impedir o aumento do autoritarismo. Todos nós que professamos a crença na possibilidade da democracia real devemos lutar contra essas complexas realidades. Nos Estados Unidos, as mulheres de cor rejeitam constantemente políticas autoritárias. É mais provável que as mulheres brancas sejam atraídas pelas ofertas do autoritarismo de “proteção” em troca de conformidade e submissão.

A personalidade autoritária envolve uma feroz defesa dos papéis tradicionais hierárquicos de gênero e uma ideia de ordem natural enraizada nas relações de poder patriarcais que elevam expressões específicas da masculinidade e relegam outras masculinidades e a feminilidade à submissão.

A realidade de que o gênero é mais complicado do que o tradicional pensamento binário masculino/feminino é considerado perigosamente desviante, como já ouvimos em declarações de Bolsonaro contra a “ideologia de gênero”.

Manifestantes brasileiros e americanos protestando contra Bolsonaro em frente a Casa Branca

IL: Quais são as maiores ameaças à democracia que o neoliberalismo representa?

TLR: Quanto tempo você tem pra ouvir essa resposta?

O neoliberalismo – aplicando a lógica do livre mercado capitalista a tudo – produz a extrema desigualdade econômica e rouba os recursos governamentais que seriam destinados a melhorar substancialmente nossas vidas com assistência médica, transporte, saúde, educação, direitos humanos, econômicos, etc.

Quanto mais os governos falham com a sua população, mais se tornam uma ferramenta das elites econômicas.

O neoliberalismo quebra o nosso senso de que somos membros de uma mesma comunidade e cria o cinismo sobre a possibilidade de promover o bem público através da auto governança.

As crises econômicas e políticas produzidas pelo neoliberalismo criam oportunidades para os movimentos sociais – sejam da direita ou da esquerda – interpretarem essas crises e oferecerem soluções. No entanto, o capital está mais inclinado a fazer um acordo com a direita do que com a esquerda.

Onde a esquerda se associa ao status quo, como no Brasil, perde credibilidade como desafiante do sistema. Quando os políticos e partidos neoliberais nos EUA e no Brasil não podiam ganhar a presidência (no caso do Brasil, mesmo depois de depor e prender sua oposição de centro-esquerda através de golpes parlamentares e judiciais) eles entraram em alianças desconfortáveis ​​com demagogos de direita, na esperança de se beneficiarem (e controlarem) os autoritários aspirantes.

Globalmente as crises do neoliberalismo estão criando mais aberturas para a direita do que para a esquerda. Vemos na França, onde o neoliberalismo – posando de defensor dos direitos humanos – venceu por pouco a extrema direita. O governo de Macron não tem respostas e está se deslocando em direção ao autoritarismo. O neoliberalismo está gasto. Podemos escolher a democracia inclusiva, feminista, multirracial ou algum sabor de autoritarismo.

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