3ª Turma

Ciência sob censura

Em parecer anônimo, CAPES se recusa a financiar Congresso Internacional sobre Constitucionalismo e Democracia

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A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do Ministério da Educação (MEC), em parecer anônimo, recusou financiar Congresso Internacional sobre Constitucionalismo e Democracia com verba disponível para realização de eventos, conforme Edital 07/2019/CAPES.

Trata-se do evento denominado IX Congresso Internacional Constitucionalismo e Democracia – O Novo Constitucionalismo Latino-Americano: Viver, Criar e Produzir Economias da Decolonialidade, promovido pela “Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano”, formada por diversos pesquisadores e professores, de universidades privadas, públicas e organizações autônomas. Neste ano, o congresso ocorrerá na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, sob a Coordenação Científica da Professora Doutora Cristiane Derani, que também é Coordenadora Regional da Rede.

Para o financiamento do evento, em 14 de maio de 2019, foi requisitado a importância de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) à CAPES, nos termos do Edital 07/2019, da CAPES, em seu item 11.2. Desde sua primeira edição, o Congresso foi financiado por verba pública. Foi concedido, em 21 de maio de 2019, o deferimento parcial de tal quantia, no importe de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Visando à implementação do total do montante solicitado, a Coordenadora do evento protocolou um pedido de reconsideração, o qual, no dia 11 de junho de 2019, negou a implementação e ainda retirou a verba anteriormente concedida, com a seguinte resposta:

“O aspecto negativo é a necessidade de recorrer aos cofres públicos para a realização de congresso que não apenas é voltado à construção científica, mas também à crítica política. A CAPES não pode destinar verbas públicas para eventos, publicações ou formação de cunho político ou partidário (sic)”.

A notícia vem sendo veiculada em diversos canais de comunicação e causou espanto e posicionamento por parte de diversos grupos de pesquisa, como o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais e O Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (UnB):

Nota de Repúdio à CAPES e Solidariedade à Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano:

O Instituto de Pesquisas, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS – vem por meio dessa nota manifestar repúdio à violação de liberdade de cátedra gerada pela CAPES, em razão da frágil fundamentação e negativa de fomento ao “Congresso Internacional Constitucionalismo e Democracia”, evento já consolidado no cenário jurídico latino-americano, e financiado nas edições anteriores pela própria CAPES, que ocorrerá na Universidade de Federal de Santa Catarina. Os ataques a autonomia universitária e ao próprio funcionamento das Universidades Federais são graves e preocupantes. Há uma crescente perseguição e censura ao trabalho desenvolvido em âmbito universitário, esse é um exemplo claro disso. Não nos calaremos diante de uma conjuntura de forte escalada autoritária, sobretudo ao nos depararmos com um trabalho de excelência desenvolvido por profissionais das principais universidades públicas brasileiras, que inclusive, possuem reconhecimento internacional. A defesa da educação pública, gratuita e de qualidade nos guiará nas lutas por uma universidade livre e pela transformação social do Brasil – Secretaria Nacional do IPDMS.

Nota de Repúdio à Censura da CAPES e de Solidariedade à EMAE/UFSC: 

O grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua, da Universidade de Brasília, com 30 anos de atuação destacada na área da pesquisa jurídica, e um dos mais antigos grupos do CNPQ, vem a público manifestar repúdio à violação da pluralidade e liberdade de cátedra promovida pela CAPES, por ocasião da negativa de fomento ao “Congresso Internacional Constitucionalismo e Democracia”, bem como externar sua solidariedade ao organizador do evento, o Núcleo de Estudos Avançados em Meio ambiente e Economia no Direito Internacional (EMAE), da Universidade de Federal de Santa Catarina. Os fundamentos para a negativa de financiamento são preocupantes e refletem o clima de perseguição e censura vivenciado pelas universidades no país: “organizadores e palestrantes de elevada relevância para comunidade de militância política na área do direito. O aspecto negativo é a necessidade de recorrer aos cofres públicos para realização de congresso que não apenas voltado à construção científica, mas também à crítica política. A capes não pode destinar verbas públicas para eventos, publicações ou formações de cunho político partidário”.

O parecer da CAPES, ao mesmo tempo em que nega o fomento, contraditoriamente ressalta a qualidade técnica da proposta e de seus organizadores, qualidade essa inerente a um evento consolidado e que caminha para 9a Edição.

Ao agir assim, a instituição acaba por reforçar ainda mais a natureza discriminatória, personalizada, imoral e ilegal da decisão em face do artigo 37 da Constituição Federal.

Resta claro, portanto, que, a pretexto de não destinar verbas para eventos supostamente “de cunho político partidário”, pretende em verdade sufocar qualquer pensamento que não seja o chancelado pelo grupo político que ocupa no momento o Poder Executivo, tentando assim suprimir a autonomia didática e acadêmica das universidades públicas.

Não podemos nos calar diante de tal cenário e repudiamos toda e qualquer forma de censura ao trabalho desenvolvido por profissionais das universidades públicas brasileiras que possuem reconhecimento internacional pelo trabalho de excelência desenvolvido no Brasil.

Sobre a negativa do financiamento, cabíveis as seguintes considerações: ausência da análise do Edital pertinente; anonimato do parecer; desconhecimento da contextualização social e políticas em que as pesquisas (todas) são desenvolvidas.

Inicialmente, observa-se que o parecer não analisa o pedido de reconsideração sob os critérios do Edital de destinação de verba. Isso significa que, em sua fundamentação para negativa da contemplação do valor integral solicitado, bem como para a retirada do valor parcialmente concedido, não foram observadas as normas atinentes, o que fere diretrizes do Direito Administrativo, bem com a própria regulamentação do Edital.

Além disso, o parecer foi redigido em anonimato, ou seja: a resposta oficial da CAPES com relação ao pedido de reconsideração, analisado por um parecerista, não apresentou indicação nominal de quem examinou a proposta, o que se pode compreender como uma forma de proteção ao seu redator, mas também configura simbolicamente em uma forma de instrumentalizar a área científica de posicionamentos ideológicos com força suficiente para mascarar, sob o manto de uma pretensa neutralidade (que sabemos inexistente no campo científico), censura contra pensamentos divergentes.

Finalmente, a questão do político e da ciência. De início, é importante distinguir política e político, que pode causar confusões conceituais nas discussões acadêmicas. Para tanto, recorro a Chantal Mouffe, em seu texto “Sobre o Político”, que é adotado aqui.

Compreende-se político como a âmbito da pluralidade da existência humana que constitui as sociedades, em localização de tempo e espaço. Seria a contextualização das pessoas em sua história, individual e coletiva, bem como os encontros e desencontros, aproximações, tensionamentos e consensos havidos na convivência humana. A política, por sua vez, é tida como o conjunto de práticas e instituições por meio das quais se pretende a organização de uma ordem. Assim, podemos entender, por exemplo, como a prática realizada dentro do Estado, por meio da política partidária.

A ciência é um tipo de comunicação/discurso que traduz-se em processo de construção do conhecimento e está inserida na esfera do político. A par disso, é fundamental compreender que, as pessoas pesquisadoras, inseridas em uma perspectiva histórico-cultural, apresentam historicidade e intersubjetividade pela própria condição humana. Somos feitos de contextos, processos, relações, dinâmicas, situadas em um determinados tempo e espaço, e dialogamos com esferas de sentidos de nossa ancestralidade, de nosso presente e da prospecção do futuro. Assim, os pesquisadores estão, inseridos em uma comunidade acadêmica (em um coletivo que os legitima), constantemente processando-se um complexo processo de reflexão e de elaboração teórica, examinando a realidade sob o prisma de teorias e teorias sob a ótica da realidade. É a partir disso que podemos falar em desenvolvimento, em progresso, em melhorias.

Aqui, ainda, pode-se adentrar na discussão a objetividade e a subjetividade das pessoas pesquisadoras, bem como das próprias pesquisas. Para isso, então, há requisitos mínimos de validação da cientificidade, bem como colegiados científicos da comunidade acadêmica que chancelam ou não as pesquisas. É o que não foi analisado no parecer comentado; ao contrário: a fundamentação foge do crivo científico, e, ele, sim, baseia-se em critérios excludentes e ideológicos – no sentido de restringir a discussão democrática acadêmica e nitidamente focado na esfera da política, visando o esvaziamento da discussão do político. É o que entendemos como censura.

Especificamente, pensar sobre o contexto político-jurídico latino-americano é reflexionar sobre os nossos modos de existência, de produção, de reprodução, de convivência, dentro de um espectro global, em uma conjuntura geopolítica e a partir, também, de uma perspectiva de sistema-mundo. É refletir sobre o nós, latino-americanos, contextualizado. É nos identificarmos em nossa realidade, dentre outros, a partir do Sul Global e em observância ao Norte Global, e o que isso significa. É nos vermos, nos enxergarmos, nos colocarmos em nossa autonomia de refletir – em nós e sobre nós. Isso é o que se espera, saudavelmente, do meio político; e isso é apartidário, dissociado da esfera da política.

Há nitidamente disputas de narrativas e de memórias em nosso contexto atual, ao mesmo tempo que em que percebemos a instabilidade das instituições estatais, que se formatam para um modelo polarizado de política em que não se permite o pensamento diverso, nem convivência diversa, ou, ainda, a existência diversa. Isso atinge diretamente a nossa proposta de democracia, de convivência plural, de político. Isso atinge construção de conhecimento, modelos de vidas, vidas. Que nessa disputa, lembremo-nos de quem somos e de onde viemos e nos ancoremos em nossa contextualização atual. Refletir sobre o panorama atual e, especialmente, sobre o que está acontecendo é imprescindível para sabermos, despertos, o que está em jogo e o que está se tentando silenciar – e porquê.

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