Justiça

CartaCapital: laços de resistências em tempos difíceis

Na cidade que elegeu Janaina Paschoal e Bolsonaros, pequenos bolsões de resistência brotam em cantos, esquinas, beiradas

Foto: Mariana Ser
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Algo fino balançava aquela sala, talvez fosse o sentimento, o embalo, ou a emoção. Talvez o cinismo torto de nossa teimosia, do fato absurdo de, apesar de tantos pesares, termos escolhido produzir diferenças. Apenas “apesar de…”, que de tanto pesar o fardo, de tão mudo o rasgo no peito de cada um, ficou algo desconfortável. De viver na colônia bandida, cada vez mais colônia, que mata, coisifica e mata e mata: o preto, o pobre, a mulher, o índio, os outros, cada vez mais outrificados.

Pois em tempos em que fatos já não são mais fatos, em que a própria mãe terra é posta em sacrifício, como se fosse outra, tudo é feito em nome das peles de papel do branco – o dinheiro. Da morte tão cotidiana, banalizada, carnavalizada, patrocinada e escancarada pelo Estado, como escárnio, algo estupefato nos coloca em compasso e nos une ali. A morte que é deixada estrategicamente a morrer, as mortes silenciadas, dadas como ingênuas e incertas, fazem-nos desejosos de vidas, outras vidas, outros possíveis.

E apesar de tantas mortes, e dos tiros surdos, estávamos reunidos em São Paulo, a cidade algo metropolitana, algo cosmopolita, ao mesmo tempo em que asceta, cheia de muros invisíveis, privações diversas e mortificações, em que nossas densidades e assimetrias se uniam em compasso de pés, de mundos e de sonhos.

Era o lançamento oficial da Rede Lado e da editoria Justiça da CartaCapital, de Brenno Tardelli, de Igor Leone e de tantos outros, que sonharam junto com eles, em um canto nu da cidade paulista, a mais paulicéia das paulistanas, a mais desvairada dos desvarios.

Regada a sorrisos e Tubaínas, das cores de Tarsila do Amaral, a antropofágica, que gritam que, no Brasil, ainda é a Europa que manda falar. De Djanira a Djamila, o poder das vozes das mulheres e das negras se erguem e ensurdecem os ruídos lá fora, como lampejos, brilham e transcendem, fazem brotar espaços, afetos e desejos.

Entre tempos e espaços, conectando cada olhar daquela sala, mesmo dos desconhecidos, jazia nosso descontentamento, que passaria a brotar outras tentativas de dissipá-lo, em que cada um de nós, trôpegos, apenas do nosso próprio desconforto e impotência, descobrimos que a vida é “ser com”. Ser sempre com o outro, que nos atravessa e nos torna maior, melhor, diversos…

Cada um naquele lugar pulsava o coração no ritmo de um samba doído, um brilho no olho e o desejo de conexão. Desejo pulsante de transformar a impotência do direito em transcendência dos devires, de desenrolar nossos nós, embaraçar nossos sonhos, entrelaçar nossas mãos, nosso sangue e nossa garra.

Redes de pressões cada vez mais nítidas, surgidas apenas de um nítido desconforto no ar, algo desconcertante, pois ninguém sabe bem o que fazer. Afinal, não há respostas possíveis para os 80 tiros de fuzis no carro da família negra, não há conforto próximo em um Estado que mata, cada vez mais, e cada vez de forma mais esdrúxula, aberta e perversa.

Não há consolo, alívio ou bálsamo para a reforma da previdência, para a normalização e avalização pelo Judiciário das comemorações de máquinas de matar, como a ditadura militar, da licença para matar do pacote criminoso de Moro. Não há sorriso possível que possa tapar o buraco no peito de cada um de nós naquela sala, no início daquela noite, em que os problemas não são esquecidos, mas juntos descobrimos que, se não podemos mudar o passado, juntos podemos construir um outro presente. Um presente que se faz em rede, pois, se vamos resistir, vamos fazê-lo juntos, enganar os vícios dos tombos, sobrevivermos de mãos dadas, jamais atadas. Não há o que comemorar.

Só mesmo a nossa união, naquela noite fina, algo sombria, mas cheia de esperança.

Foto: Mariana Ser

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