3ª Turma

Prender resolve ou não?

É certo que tornar “ideológico” o debate não contribui para que o problema seja encarado.

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O professor Leandro Piquet Carneiro, em texto publicado nesta FOLHA em 29.05.2019, manifesta sua crítica ao absoluto descrédito de alguns especialistas quanto à eficácia da prisão para a contenção da criminalidade.

Porém, em primeiro lugar, ele parece incorrer em um mesmo equívoco generalizante já denunciado pelo criminólogo norueguês Johannes Andenaes em meados da década de 1960.

Conforme este estudioso, em seu artigo “Deterrence and Specific Offenses” (1971), as condutas criminosas fruto de planejamento seriam mais facilmente controláveis por meio da dissuasão em relação àquelas originadas de atos impulsivos.

Assim, parece bem pouco provável que a tipificação do feminicídio dissuada um marido de ceifar a vida da mulher em um momento extremo de fúria, motivado por um cego sentimento de ciúmes.

De outro lado, parece ser bastante provável que parcela significativa daqueles que costumavam dirigir após ingerir bebida alcoólica se sinta desencorajada a continuar a fazê-lo após o recrudescimento penal para a hipótese, acompanhado de ostensiva fiscalização policial, especialmente se tomarmos em conta certo perfil de cidadãos, para os quais uma das consequências do ato lhes é bastante indesejada (ter retirado o direito de conduzir veículo automotor por prazo considerável) e para quem a mera existência de um processo crime em suas vidas é especialmente vexatória – portanto, aquela parcela da população geralmente imune ao processo de criminalização, que tem como alvo sabido jovens provenientes dos extratos mais baixos da sociedade.

Segundo o professor Leandro Piquet Carneiro, haveria “evidências disponíveis com dados de outros países e há justificativas consistentes sobre o mecanismo causal que liga o encarceramento à diminuição do crime”.

As evidências e os dados não foram apresentados.

E o suposto mecanismo causal pode não passar de mero palpite.

É certo que tornar “ideológico” o debate não contribui para que o problema seja encarado.

Porém, não há nada de ideológico em se perquirir as eventuais razões mais profundas de determinadas políticas públicas.

Em estudo de 2010 (“The spirit level: why greater equality makes societies stronger”) Richard Wilkinson e Kate Pickett, por exemplo, demonstram a relação direta entre as taxas de encarceramento dos países e suas desigualdades de renda.

Segundo tais autores, as taxas de encarceramento não se explicam simplesmente em uma razão direta com as taxas de criminalidade, mas muito mais em função da atitude de dada sociedade em face do fenômeno criminal, seja dando maior foco à punição ou, de outro lado, à reabilitação. A desigualdade social acentuada gera distância entre as pessoas, ausência de identificação e alteridade. O medo do crime é fomentado e a consequência lógica é a demanda pela punição em face daqueles que se vê como criminosos.

Cerca de 28% dos presos cumprem pena em razão da aplicação da Lei de Drogas.

Para ficarmos em um exemplo de fato candente para o momento atual, já que, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de um quarto das vagas nas prisões estão ocupadas por envolvidos com o tráfico, não parece que o recrudescimento penal nesta área tem produzido resultados na contenção da criminalidade.

O jovem que “decide” entrar para a indústria do tráfico não indica realizar qualquer cálculo racional que leve em conta a eventual probabilidade de vir a sofrer dada reprimenda penal. Se nem ao menos o risco de vir a ser morto, seja em decorrência de confrontos entre traficantes, seja em decorrência da violência policial que atinge em cheio justamente a parcela da população da qual provém parece desempenhar algum papel importante em suas escolhas, o risco de vir a ser preso não tem desmotivado muitos jovens a entrarem para o mundo do tráfico – já que, conforme apontou Luciana Boiteux, em estudo publicado em 2014, com relação a estatísticas do Infopen/Ministério da Justiça, o percentual de presos condenados por tráfico na população carcerária brasileira passou de 9,10% em 2005, para 25,21% em 2012 (“Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas”).

E quanto ao efeito incapacitante, o número de mão de obra disponível para ocupar as novas vagas que surgem diariamente na indústria do tráfico vem indicar que a ocasional contenção de alguns não desempenha papel algum na redução da prática delitiva.

E não é só.

A par da chamada cifra oculta da criminalidade, que indica que apenas uma ínfima parcela dos atos desviantes é de fato selecionada pelo sistema – o que contribui para por em dúvida os efeitos dissuasório e incapacitante da prisão –, tem-se que, conforme Steven N. Durlauf e Daniel S. Nagin (“Imprisonment and crime – can both be reduced?” 2011), nem mesmo a ameaça de longas penas traz efetivo efeito dissuasório, justamente em razão do desconto feito no cálculo elaborado pelo potencial criminoso, frente a uma ameaça punitiva muitas vezes bastante incerta e projetada em um futuro também pouco palpável.

E quanto ao efeito de incapacitação, observam que as evidências empíricas têm apontado para uma relação negativa entre a idade dos indivíduos e a propensão criminosa, de modo que a segregação por longos períodos de indivíduos que já tenham passado pela fase da vida em que seriam mais propenso à criminalidade seria uma medida absolutamente inócua.

Ou seja, incapacita-se quando já não se precisa mais – e também muitas vezes indivíduos que sequer ostentariam efetivamente a imaginada tendência de cometimento de novos delitos graves.

Na verdade, conforme Per-Olof Wikström, Andromachi Tseloni e Dimitris Karlis (“Do people comply with the law because they fear getting caught?” 2011), a maioria das pessoas, na maior parte das situações, agiria conforme as leis não porque sentiria receio da eventual punição por infringi-las, mas simplesmente por não vislumbrar o comportamento desviante como uma alternativa de ação em suas vidas.

Existem múltiplos fatores aptos a impactar a criminalidade (desenvolvimento econômico e social, educação, desigualdade, coesão social), sendo o papel desempenhado pelo controle formal bastante reduzido, no geral.

Mas, de fato, o assunto é por demais complexo para ser confiado a especialistas, sejam de que área forem, que não estejam dispostos a encará-lo em sua integralidade, com todas as nuances próprias de um fenômeno extremamente multifacetado.

Na linha da famosa frase do jornalista americano Henry Louis Mencken, eis mais uma questão complexa que pode suscitar respostas simples e erradas.

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