3ª Turma

A Terra é plana e a ditadura não matou ninguém

A naturalização da mentira e do fake-revisionismo praticado por Bolsonaro é irmão siamês da naturalização do mal.

Apoie Siga-nos no

Ao negar que houve tortura, ofender familiares das vítimas e intervir na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Bolsonaro transforma o fake-revisionismo em marca de seu governo.

Levou apenas uma geração. Não mais que 30 anos entre a promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988, e a consagração nas urnas, em outubro de 2018, do mais abjeto revisionismo sobre as violações de direitos praticadas pelo Estado entre 1964 e 1985.

Hoje, esse revisionismo fake assume a forma de negação. Negação e chacota — com a assinatura oficial da Presidência da República.

Ninguém pode se dizer surpreso. O capitão-em-chefe jamais escondeu o que pensa. Enquanto ridiculariza os dados do INPE, defende o histórico de nepotismo dele e de seus filhos e faz campanha para emplacar o nome do zero-três para a embaixada do Brasil em Washington, Bolsonaro retoma com vigor renovado um de seus passatempos preferidos: homenagear torturadores e ofender suas vítimas.

A fixação de Bolsonaro com o tema é pública e notória. E antiga. Uma década atrás, o então deputado federal fixou na porta de seu gabinete um cartaz com a caricatura de um cão e a frase: “Desaparecidos do Araguaia: quem procura osso é cachorro”. Em 2015, ao ouvir que a jornalista Miriam Leitão havia sido torturada e presa numa cela junto com uma jiboia, afirmou ter ficado com pena da cobra. Em 2016, dedicou seu voto a favor do impeachment à memória do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem chamou de “o pavor de Dilma Rousseff”. No mesmo ano, disse em entrevista a uma rádio que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.

Desde que assumiu a Presidência, sete meses atrás, Bolsonaro voltou a se pronunciar repetidas vezes de forma desrespeitosa em relação à memória das vítimas da ditadura. Sobretudo, pintou e bordou na tentativa de interditar o próprio conceito de ditadura. Às vésperas do aniversário do golpe, em março, instruiu as Forças Armadas a comemorar a data nos quartéis. Por meio do canal oficial da Presidência da República no WhatsApp, divulgou no dia 31 daquele mês um vídeo com a versão de que não houve golpe, mas uma resistência corajosa e patriótica à ameaça comunista, e que o Exército atendeu aos apelos da sociedade e “nos salvou”.

Recentemente, Bolsonaro voltou a atacar Miriam Leitão, acusando-a de mentir quando diz que foi torturada. Em seguida, num dos episódios mais graves da sanha revisionista, usou a memória do desaparecido Fernando Santa Cruz para ofender seu filho, o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz.

“Se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele”, declarou o presidente.

Instado a se explicar, Bolsonaro afirmou que Santa Cruz, executado em 1974, teria sido morto por companheiros de sua organização, a Ação Popular, e não sob tortura como revelam documentos reunidos pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão Nacional da Verdade. “Você acredita em Comissão da Verdade?”, indagou aos que confrontaram a declaração. “Isso aí é balela”.

Fake-revisionismo pela caneta

Junto com o fake-revisionismo declaratório, Bolsonaro exerce o fake-revisionismo pela caneta, com efeitos ainda mais devastadores. Nesta quinta-feira (1/8), exonerou quatro dos sete integrantes da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), incluindo sua presidente, a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga, nomeada em 2014. Um dia antes, Eugênia havia feito o óbvio: protestou contra a declaração de Bolsonaro sobre Fernando Santa Cruz e reiterou o que é reconhecido pelos órgãos oficiais: Fernando foi morto em 23 de fevereiro de 1974, aos 26 anos, após ter sido capturado por agentes da repressão. Seu filho tinha apenas 2 anos.

Em atestado expedido em julho deste ano pela CEMDP com a finalidade de retificar o assento de óbito de Fernando Santa Cruz, sua morte é descrita como “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial”.   

A CEMDP foi criada em 1995, então vinculada ao Ministério da Justiça, e, desde janeiro, responde ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Além de Eugênia, foram exonerados o coronel da reserva João Batista da Silva Fagundes, representante do Ministério da Defesa, a advogada Rosa Cardoso, ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade e representante da sociedade civil, e o deputado federal Paulo Pimenta, representante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. A mudança foi justificada por Bolsonaro como uma adequação à conjuntura atual. “Agora o presidente é de direita”, declarou. Um dos novos membros é o deputado federal Filipe Barros (PSL), de 24 anos, entusiasta da ditadura.

A intervenção presidencial na CEMDP era uma espécie de bola cantada nos bastidores da entidade. Não foi a primeira canetada de Bolsonaro com efeitos sobre a comissão. Em abril, ao publicar o Decreto 9.759, que extinguiu conselhos e órgãos colegiados ligados à administração federal, Bolsonaro atingiu duas equipes que atuavam na busca de desaparecidos e na identificação de vítimas da ditadura, o Grupo de Trabalho Perus e o Grupo de Trabalho Araguaia, ambos coordenados pela CEMDP.

Intervenções como essas podem ser entendidas como retaliação ou como reflexo da escalada conservadora. Essa interpretação, no entanto, está longe de formar consenso. No dia em que Bolsonaro evocou a execução de Fernando Santa Cruz para ofender Felipe Santa Cruz, duas das cinco hashtags mais reproduzidas no Twitter apoiavam a agressão: #BolsonaroTemRazao chegou ao topo da lista, seguida de perto por #OABdoPT. Sobre a exoneração de Eugênia, um articulista do Estadão usou seu blog para reclamar que Bolsonaro e Damares erraram: deveriam ter acabado de uma vez por todas com a Comissão — que, segundo ele, “só serviu para usar dinheiro do pagador de impostos para pagar grossas indenizações a quem lutou para substituir uma tirania por outra”.

Espírito do tempo

O som e o sentido dessas reações funcionam como termômetro do zeitgest, o espírito do tempo. Enquanto a investigação dos crimes da ditadura e a punição aos violadores de direitos avançam em países como a Argentina, há no Brasil uma claque sempre disposta a negar a tortura, elogiar a repressão, difamar os movimentos de resistência, transformar ditadura em “ditabranda” e, sinal dos tempos, ajudar a desmontar as instituições dedicadas a lutar por justiça e reparação.

O que parece especialmente surpreendente — ou angustiante — é notar que essa claque, mais de meio século após o AI-5 e trinta anos depois da promulgação da Constituição Federal, tem sido amplamente endossada por intelectuais, formadores de opinião e influenciadores digitais — que não hesitam em fechar os olhos para a verdade factual e passar pano para agressões e atitudes criminosas disfarçadas de declarações polêmicas ou destemperadas. Documentos oficiais não apresentam uma “versão” da história, tampouco um boato reproduzido por Bolsonaro pode ser chamado de “versão”.

Quando um presidente da República mente, é fundamental afirmar que ele mentiu. Quando uma declaração é mentirosa ou criminosa, é importante não a noticiar como uma declaração “polêmica” ou “controversa”. O nome correto da mentira é… mentira.

A naturalização da mentira e do fake-revisionismo praticado por Bolsonaro é irmão siamês da naturalização do mal. Acostumar-se com ela é um atentado não apenas contra a democracia ou contra a história, mas contra a humanidade.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo