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A subserviência jamais pode ser estratégia da Defensoria Pública

O agir da defesa pública deve ser no sentido de denunciar as injustiças que compõem o sistema punitivo. E essa atuação não pode esperar

Luiz Fux em lançamento de livro. Foto: Felipe Sampaio/STF Luiz Fux em lançamento de livro. Foto: Felipe Sampaio/STF
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Em uma obra cinematográfica nacional que alcançou uma bilheteria notável, merece ser destacada cena em que o Capitão Nascimento começa a instrução aos seus alunos com a repetição de um determinado vocábulo em diversos idiomas. A tensão da cena decorre da possibilidade de alguém se entregar aos braços de Morfeu e, assim, explodir uma granada. A dramaticidade da instrução talvez explique o encantamento de determinadas instituições públicas pela estratégia. O que se examina é se na atuação da Defensoria Pública (DP) subsiste algum espaço para a tão encantada litigância estratégia.

A posição assumida neste texto é a de que, ao menos no âmbito do sistema de (in)justiça criminal, pensar na endeusada “litigância estratégica” é romper com a própria razão de ser da Defensoria Pública. A explicação envolve a realidade brasileira, ou seja, um pais de desigualdades abissais em que, por força de uma persistente mentalidade autoritária, modificações normativas são verdadeiramente sabotadas por operadores jurídicos. Não se pode desprezar a sobrevivência de um senso comum dos juristas, que sustenta uma associação – que é ilusória – entre o número de aprisionamentos e o sentimento de segurança experimentado pelos ditos cidadãos de bem.

Cabem, então, instigantes questionamentos: a Defensoria Pública possui alguma essência? Em caso positivo, qual seria o seu conteúdo. Essas perguntas somente podem ser respondidas com os olhares voltados para a realidade social e para a Constituição. O diálogo estabelecido entre os fenômenos social e jurídico é proveitoso, desde que se reconheça a existência de diferenças gritantes entre os diversos segmentos e, ainda, se realize a combinação entre o disposto no artigo 3º e 134 do Texto Constitucional:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.”

Em razão dos objetivos fundamentais e do papel da Defensoria Pública promover a gramática dos direitos humanos, é imperioso apontar que a essência desta instituição pública é se posicionar sempre pelo vulnerabilizado, o que, portanto, indica o seu caráter contra-hegemônico.

E antes que se questione a existência do termo vulnerabilizado, oportuno se mostra recorrer aos ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos:

E a palavra exacta é vulnerabilizados e não vulneráveis. Efetivamente só existem grupos vulneráveis porque há outros grupos desmesuradamente mais poderosos que eles que são invulneráveis. Ou seja, ninguém é inatamente vulnerável: é vulnerabilizado pelas relações desiguais de poder que caracterizam a sociedade.”[i]

Na era do pleno domínio do neoliberalismo, o agir defensorial deve se voltar contra a política de exclusão daqueles considerados como imprestáveis para o ato mais importante da sociedade: o consumir. Mas, não cessa aqui a práxis da DP, sendo certo que enquanto muitos aplaudem cada demonstração midiática do sistema de (in)justiça criminal, deverá ela se insurgir. Bradar e não ter vergonha de se posicionar pelo irrestrito respeito ao estado de inocência, a começar pela regra de tratamento que dele decorre.

Quem está preso, tem pressa; assim, poderia concluir Herbert José de Souza, caso examinasse o draconiano sistema prisional brasileiro, que, aliás, foi reconhecido como incapaz de assegurar direitos mínimos aos presos, ou seja, subsiste o Estado de Coisas Inconstitucional. Dessa forma, cabe à DP no exercício diário da litigância ter em mente o tempo no cárcere e as condições indignas que são impostas aos seus defendidos. Se o êxito na provocação não pode ser assegurado em cada pedido de liberdade, deve-se reconhecer a existência de um verdadeiro agir político, que não se confunde com interesses partidários, mas são voltados para expor e estabelecer microfissuras no sistema de (in)justiça criminal.

Atendimento realizado na Defensoria Pública de SP (Divulgação/Defensoria Pública SP)

Independentemente da sua classe, o que denota uma revisão conceitual, cada integrante da Defensoria Pública deve se considerar e atuar como um verdadeiro intelectual orgânico voltado para o vulnerabilizado que defende. Assim, no âmbito criminal, deve transparecer em sua labuta os sentimentos e sensações trazidas pelo seu defendido: angústia, medo, ansiedade, abandono, fome, insalubridade, fedor, entre tantos outros.

É claro que esse agir, essa exposição, traz um desconforto, ainda mais para quem se encontra moldado pelo viés autoritário e que não se mostra capaz de reconhecer no outro algo que possui em comum: a humanidade. Essas atuações defensivas são capazes de criar dissabores, até mesmo inimizades daqueles que se encontram em posições confortáveis e que não admitem críticas. É esse o preço da atuação contra-hegemônica e, caso esquecido este modo de defender, desconfigurada estará a instituição, perdida a sua essência.

A título de litigância estratégica, o que se verifica, no âmbito criminal, é uma forma eufemística de subserviência.

De um desempenho burocrático, apático e cômodo da defesa pública. Sobre ilações cerebrinas que não se sustentam, negociam-se direitos, expõe-se a risco de perecimento da vida do defendido. E toda essa lógica para não impedir que um diálogo – que somente existe na cabeça de burocratas – seja perdido. A figura do intelectual orgânico é capturada por outra bem diversa e antagônica: a do serviçal da “justiça”, que não briga, que quer compor e auxiliar sempre os demais atores jurídicos, mesmo quando isso traz prejuízo evidente ao vulnerabilizado que ele representa.

O agir da defesa pública deve ser, antes de tudo, político no sentido de denunciar as injustiças que compõem o sistema punitivo. E essa atuação não pode esperar! A liberdade não pode aguardar. Os direitos previstos na LEP devem ser imediatamente buscados. Nenhuma garantia poderá ser suprimida. E, se nessa luta, desavenças existirem, o intelectual orgânico sabe que poderá desagradar muitos, mas jamais poderá trair seu vulnerabilizado defendido. No âmbito criminal, estratégica se mostra a subserviência e essa jamais pode ser admitida pela defesa pública.


[i] SANTOS, Boaventura de Sousa. Prefácio. In:  SIMÕES, Lucas Diz et. all. (organizadores). Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. p. 20.

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