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A resistência é feminina

O mundo pode até tentar andar para trás, não as mulheres. A resistência é feminina e a desobediência também

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O crescimento da pobreza e da extrema pobreza é uma vergonha para o Brasil. Em 2017, 5,2 milhões de crianças e adolescentes entre zero e catorze anos viveram na extrema pobreza, com menos de 140 reais mensais; 18,2 milhões, ou 43,4%, receberam até 406 reais no mês e estão dentro da linha da pobreza, realidade que compromete drasticamente o futuro do país. Aos ver esses números, me veio a imagem da posse de Michel Temer na Presidência da República, em abril de 2016 – depois do golpe institucional que tirou a primeira presidenta eleita do poder -, onde se via apenas homens brancos na cerimônia. Não poderia dar certo. Infelizmente a história se repete. De 22 ministérios, o futuro presidente Jair Bolsonaro anunciou apenas duas mulheres no primeiro escalão (sem discutir o mérito de uma ministra defender que as igrejas evangélicas governem o Brasil…). Não poderá dar certo. A resistência é feminina.

No Brasil, a bancada feminina na Câmara Federal cresceu 50% com a eleição de 77 mulheres. A representação passou de 10% para 15% de 513 deputados. O resultado é insatisfatório. Em um ranking de 193 países feito pela União Interparlamentar, o Brasil ocupa a 154ª posição em percentual de mulheres no Parlamento, pior resultado entre os países sul-americanos.

A Bolívia está em 2º, com 53,1%. O problema de poucas mulheres no Parlamento é a dificuldade de se obter maioria, sendo necessário o apoio de pelo menos um terço da bancada masculina para aprovar projetos. A participação de mulheres na política é um indicador do grau de amadurecimento das democracias. Quanto mais postos de liderança no governo, mais igualitário tende a ser o país. No Brasil, o sexo feminino, 51,5% da população, representa 40% da força de trabalho, mas recebe cerca de 71% do salário dos homens. Para piorar, enquanto os homens dispensam em média 10,5 horas por semana aos afazeres domésticos, as mulheres dedicam 18,1 horas semanais, 73% a mais que o sexo masculino. A resistência é feminina.

Em 2007, numa madrugada durante a festa 100% Favela, uma das mais tradicionais do rap de São Paulo, na favela Godoy, no Capão Redondo, perguntei ao líder dos Racionais, Mano Brown, se o menino que brincava ao lado era dele. “É nosso!”, respondeu. Eliane Dias, empresária, advogada, líder feminista negra e companheira do Mano Brown há 25 anos, explica a rede de solidariedade feminina. “A mulher tem sensibilidade, sabe dialogar, sabe acolher, sabe dizer não”. Lembrei-me desse episódio quando há poucos meses, em uma roda de conversa com moradoras da Ocupação 9 de Julho, no centro de São Paulo, me chamou a atenção a fala no plural: nossas dificuldades, nossos desafios, nossos problemas, nossos filhos, nossas crianças, nosso abandono. “Se quiser ir rápido, vá sozinho; se quiser ir longe, vá acompanhado”, diz o provérbio africano. A resistência é feminina.

As políticas regressivas de direitos humanos do governo Donald Trump nos EUA contra a imigração, os altos índices de violência e as leis discriminatórias contra a população LGBTQI, e o movimento #MeToo, de protestos e denúncias contra o assédio sexual, diante de um presidente acusado de abusos por várias mulheres, foram responsáveis por um número recorde de candidatas eleitas nas disputas legislativas nos EUA. Das 435 cadeiras da Câmara dos Deputados, 98 serão ocupadas por mulheres, sendo duas muçulmanas, uma indígena, além de latinas e jovens militantes. Segundo o ranking da União Interparlamentar, de 193 países, os EUA ficam na 102º lugar em representação feminina nos parlamentos, inferior a todas as nações europeias e de alguns países latino americanos, como Cuba, Bolívia e México. A resistência é feminina.

Assembleia do parlamento de Ruanda, onde há o maior número proporcional de mulheres. Foto: Governo de Ruanda

Desde 2008, Ruanda é o país que tem o parlamento mais feminino do planeta: 63,8% da Câmara Baixa são mulheres. Em 1994, o país viveu o terror do genocídio que vitimou mais de 800 mil pessoas em 100 dias. Estima-se que de 250 a 500 mil mulheres tenham sido estupradas. Mais de 20 mil bebês nasceram, milhares foram assassinados pelas próprias mães ou morreram infectados pelo vírus HIV. Dois anos após o genocídio, 70% da população eram femininas e adultas. Vítimas da brutalidade, as mulheres precisaram se reinventar para enfrentar a realidade. Em 2003, a Constituição instituiu direitos das mulheres, sendo estabelecidas cotas no Parlamento e em todos os órgãos de decisão, e a criação de conselhos locais exclusivamente femininos. A resistência é feminina.

As sul-coreanas decidiram se rebelar contra os rígidos padrões orientais de beleza, que fazem da Coréia do Sul o maior consumidor de cosméticos do mundo. A busca obsessiva por uma pele clara, olhos grandes, nariz delicado e queixo afinado já levaram 60% dos jovens a se submeterem a algum tipo de procedimento cirúrgico. Seul, capital da Coréia do Sul, é também conhecida como a capital mundial das cirurgias plásticas. Com a campanha #escapethecorset, ou “liberte-se do espartilho”, jovens resolveram protestar contra a “escravidão” da beleza, quebrando seus estojos de maquiagem, jogando fora quilos de produtos estéticos, cortando os cabelos curtos e assumindo o uso de óculos. A resistência é feminina.

Está mais do que na hora de darmos passos firmes na defesa dos direitos das mulheres. Joi Ito, diretor do MIT Media Lab 2011, um dos principais centros de pesquisa de internet e tecnologia do mundo, recomenda: “a desobediência gera mudanças e é um componente vital da inovação, da ciência e da democracia”. O mundo pode até tentar andar para trás, não as mulheres. Afinal, a resistência é feminina.

A desobediência também!

Mônica Dallari é jornalista, trabalhou na TV Cultura, Jornal do Brasil, Folha.

Imagem destacada: Museu de Arte Contemporânea de Jeju, na Coréia do Sul. Foto: Le Bistronome/Flickr

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