3ª Turma

A ralé brasileira e o não ser: notas sobre uma sociedade desigual

A era do retrocesso se instalou e atropelará qualquer resquício de democracia que se apresentar como empecilho aos interesses do capital

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Ano a ano notícias veiculadas pelas grandes mídias apresentam isoladamente, mas estrategicamente, casos de “uma aluna de escola pública, negra, e de família pobre que alcançou uma vaga no curso de Medicina ou de Direito em uma concorrida universidade pública”. Estas notícias parecem soar como um alento aos seus pares, que se encontram na mesma vizinhança violenta, experimentam os mesmos preconceitos e frequentam as mesmas escolas com problemas estruturais. Como se todos que lá estão pudessem alcançar tal êxito, bastando se esforçar e merecer.

Em fevereiro de 2018, uma aluna de escola pública do Rio de Janeiro, negra e de família pobre ingressou no curso de Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro e afirmou, posteriormente, que “Filha de pobre também pode ser médica”.

A partir desta afirmação analisamos a importância atribuída a tal notícia por uma mídia dominante, e que é dominada pela elite e voltada para a classe média. Não se trata, simplesmente, de atribuir à notícia uma visão moderna e racional de que, se um consegue, todos conseguem, ou uma visão de que o Estado, então, está fazendo a sua parte e garantindo o acesso das classes historicamente excluídas às mesmas oportunidades que os filhos da classe média e da elite. Não somos a Noruega, não somos o Canadá, e nosso Estado trabalha arduamente para nos manter distantes da realidade destes países. Precisamos falar sobre o fato de que o acesso às melhores oportunidades pela ralé, no que depender da elite e de seus capatazes (a classe média é classificada por Jessé de Souza como “os Capatazes da Elite”, como uma forma de justificar as ações desta classe em relação às camadas mais pobres da sociedade, que o mesmo autor chama provocativamente de ralé brasileira), jamais ocorrerá de maneira naturalizada, sem virar notícia.

Aquela notícia é uma migalha oferecida às camadas mais pobres da sociedade, com o objetivo de garantir a manutenção do discurso errático da meritocracia.

A notícia é uma forma da ralé, esta camada excluída das decisões políticas, mas incluída no discurso do mérito, não se revoltar diante de sua precária condição de vida e da desigualdade social que sente na pele. Uma forma de fixar o discurso de que basta estudar como “aquela vizinha” para ser doutor ou doutora. Já para as classes mais favorecidas a notícia surge como um alento à “culpa cristã” que vez ou outra as acomete, desresponsabilizando-as frente à tragédia diária vivenciada por milhões de brasileiros e tornando possível, assim, que olhos sejam desviados serenamente do menino que pede esmola no asfalto ou vende balas no semáforo.

A mesma lógica das migalhas é praticada pela elite em relação à classe média. Um celular de última geração, uma camisa da Tommy ou um upgrade na viagem para a Europa em classe executiva com pontos guardados uma vida inteira. Estes itens são suficientes para a classe média ser um pouquinho elite, e defendê-la com unhas, dentes e reformas. Para o alcance destas migalhas da elite, defende-se a precarização de direitos trabalhistas e previdenciários conquistados com luta e por eles lutados, em prol de um discurso neoliberal do auto-empreendedor, como se tal prática fosse uma opção a todos.

À ralé nunca foi permitido ter acesso ao “ser”, devendo este grupo de pessoas se manter no sombrio e velado caminho do “não ser”. Para esta classe social, o objetivo é não ser marginal, não ser drogado, não ser traficante, é se esforçar para ser ninguém. E ser ninguém para a ralé é positivo, pois sendo ninguém, não será aquilo que não se deve ser.

Nesse ponto, necessário um parêntese: a dignidade humana é – ou deveria ser – característica intrínseca ao indivíduo, tendo como pilares a liberdade e a igualdade. A igualdade, contudo, não se refere apenas à isonomia perante a lei, mas àquela considerada sob seu prisma material, voltada à concretização dos direitos e garantias para além do papel.

A liberdade, por seu turno, é verificada a partir do instante em que o sujeito possui acesso ao mínimo capaz de lhe proporcionar uma vida digna; do contrário, não haverá liberdade, mas dominação, exclusão e opressão.

Somente quando o indivíduo tem acesso às condições de uma vida digna é que poderá exercer, em sua plenitude, os direitos dos quais é titular. Noutras palavras, é nesse ponto que poderá ser. O estudioso Amartya Sen, Nobel de Economia de 1998, diagnostica que a pobreza extrema, a fome coletiva, a subnutrição, a marginalização, a privação de direitos básicos, a carência de oportunidades, dentre outros males do mundo em que vivemos, compartilham uma mesma natureza: são todas modalidades de privação de liberdade.

Portanto, negar ao ser humano o mínimo para que se desenvolva enquanto sujeito jurídico, moral, político e social é, em última análise, negar-lhe a liberdade para traçar seu destino e, assim, sua própria dignidade. O caminho do “não ser” é demonstração da força opressora que recai sobre a ralé, tolhendo-lhe a liberdade de escolher ou determinar livremente seu destino, dado que já definido e imposto pelas camadas dominantes.

No entanto, “não ser”, ainda que se revele um ato destituído de qualquer voluntariedade ou liberdade por parte do sujeito, é um caminho cada vez mais complexo. Sem as garantias oriundas de contratos de trabalhos adequados, em relações de emprego nos quais é sempre o elo mais frágil e com o número de postos de trabalho cada vez mais baixo devido à automatização das tarefas que cabiam às classes mais baixas, aumenta a cada dia o número de “excluídos desnecessários”, nas palavras do Profº Elimar Pinheiro do Nascimento.

Estes excluídos do mercado de trabalho, que antes eram incluídos em trabalhos técnicos e operacionais e, desta forma, garantiam o mínimo de educação, agora nem isso têm, pois para cada dez vagas que uma linha de produção ofertava há cinco anos atrás, hoje se oferta uma – e quando se oferta. Sem acesso à educação, sem emprego, sem network, sem renda e vítimas da desigualdade social, à ralé resta a rua, a criminalidade, o tráfico de drogas. Resta ser o alvo da mira.       

Por óbvio, não se quer aqui afirmar que à ralé é impossível a ascensão social, estando os indivíduos que a compõem fadados à marginalização por não se encaixarem no padrão auto-empreendedor determinado pelo capital. Por outro lado, muito menos se pode defender que a todos é possível romper o ciclo de estigmatização, opressão e invisibilidade imposto a tais camadas desde cedo, sob pena de cairmos nas amarras da perversa lógica meritocrática neoliberal, a qual, ao camuflar as vantagens das classes dominantes e desconsiderar o contexto social do indivíduo, transforma privilégio em mérito e pobreza em fracasso.

A desigualdade, assim, passa a ser naturalizada e justificada com base na doutrina do livre-arbítrio: se basta querer, quem continua às margens da sociedade não quis e não se esforçou o suficiente, merecendo, pois, ser relegado ao, no máximo, “não ser”.

Num cenário que afirma uma causa a partir do falseamento da realidade social, homens brancos protagonistas no ambiente econômico, hierárquico, acadêmico e cultural brasileiro não são causa de questionamento. Do mesmo modo, não comove ou espanta a constatação de que mais da metade da população carcerária no país é formada por jovens negros, pobres e de baixa escolaridade; que jovens negros moradores das periferias são vítimas de 77% dos assassinatos registrados no Brasil; que negros representam 76% dos mais pobres no país.

A aniquilação daqueles que, frustrando o perfil subserviente e de resignação esperado pelas elites, não seguem o caminho do “não ser”, é palavra de ordem no seio de uma sociedade que não questiona e, pior que isso, persegue os que questionam. Do menino aviãozinho do tráfico àquele que disputa uma vaga na faculdade pública por meio das cotas, todos são alvo de um Estado que, em pese aparentemente constituído sobre bases democráticas, é constantemente tensionado por interesses de grupos que ainda não sabem lidar com a ralé ocupando espaços historicamente reservados às classes dominantes, pregando abertamente seu extermínio.

 

Talvez por isso, pela incapacidade de aceitar a rebeldia da ralé em ultrapassar as barreiras limitantes do “não ser”, temos testemunhado o desmonte do Estado social e o fortalecimento do Estado policial em diversas perspectivas. O lugar reservado àqueles destituídos de qualquer privilégio é o da invisibilidade. Acaso não estejam sob o jugo das elites, servindo aos seus interesses e com direitos cada vez mais precarizados, é na cadeia que deverão ser despejados.  O recado é claro: na universidade e nos demais espaços que promovem a emancipação do indivíduo não há lugar para essa gente. Que o digam os idealizadores dos cortes no orçamento da educação.

Ora, num país que preza pela manutenção do status quo, não esperaríamos algo muito diferente. A questão é que, atualmente, notamos que até mesmo o status quo está sob ameaça. A era do retrocesso se instalou e atropelará qualquer resquício de democracia que se apresentar como empecilho aos interesses do capital, disparando oitenta tiros de fuzil no homem negro que tentou, um dia, ser.    

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