Justiça

A [law]rização e o mau copismo ensino jurídico brasileiro

Importação mal acabada de ensino superior estadunidense no ensino brasileiro está em fiel adesão à história de silenciamento racial na área

Foto: OAB
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O processo de importação de modelos de ensino adotado pelas “law schools”, escolas de jurídicas estadunidenses, tem crescido no Brasil. O argumento principal para seu copismo é que visa reproduzir as experiências de universidades de prestígio internacional. Harvard é seu principal ícone e o ensino jurídico do sul Geopolítico, o público-alvo. Nomeio isso como School [Law] rização[1] dos cursos jurídicos.

Não há forma de dominação que abdique do poder de nomeação, reprodução e coerção do direito: nossas elites entenderam isso desde o início do processo de colonização e, não em vão, implementam um monopólio do direito, acessado, obviamente, apenas pelos brancos ou embranquecidos filhos das elites que podiam cursar o ensino jurídico na metrópole portuguesa, principalmente Coimbra e Lisboa, cujos modelos de ensino baseavam-se predominantemente no conservadorismo filosófico da escolástica cristã.

Com a criação da Faculdade de Direito de Olinda e de São Paulo, em 1827, não se viu grande mudança, salvo o “CEP” das escolas jurídicas e à exceção de alguns homens brancos ou embranquecidos que foram heroicizados pela nossa historiografia intelectual, para que sejamos justos e não sejamos taxados de negros ressentidos. A paisagem racial permaneceu intacta: a condição de subalternidade dos povos indígenas e população negra, e os privilégios dos que carregavam o signo da cor dos colonizadores.

Dessa forma, até as ideias filosóficas liberais, que permearam as revoluções burguesas em ascensão na época, foram pouco acessadas pelas elites jurídicas. Despreocupadas com os problemas internos que atingiam as grandes populações excluídas no Brasil, para essas classes abastadas e parasitárias, o que “mais valia” era ter um diploma de bacharel e portar um grosso e brilhante anel! Como formular um pacto ou projeto de Nação se não havia dissenso intelectual apto para formular teorias jurídicas que contemplassem a diversidade e os crônicos problemas de exclusão do país?

 

Não à toa, fomos o último país a abolir a escravização nas Américas e, evidentemente, não houve nenhum esforço para discutir os efeitos do episódio mais vergonhoso de nossa história e, assim, reparar os povos indígenas e a população negra. O direito foi fundamental para selar o pacto de silenciamento racial e foi fundado a partir de três marcos jurídicos centrais: a abolição da escravidão, em 1888; a proclamação da “r”epública, em 1889; e a primeira constituição republicana, em 1891.

Se negros, indígenas e, até determinado momento, mulheres, não estavam nesses espaços de muito poder e uma caricatura de muito saber (as escolas jurídicas), as elites, por décadas, ditam  a cartilha sobre como dizer, reproduzir e aplicar o direito da forma que melhor lhe convém, por meio de legisladores, administradores, julgadores e professores oriundos, em regra, do mesmo “andar de cima” da estrutura social brasileira.

O direito, portanto, foi e é basilar para silenciar e desmobilizar os sujeitos subalternizados.

A difusão de categorias jurídicas que pregavam a universalização dos direitos à igualdade, à liberdade e à fraternidade foi direcionada “para inglês ver”. Jamais para a população indígena e negra sentirem. Com o objetivo de performar a sempre requentada ideia de mérito, as elites, recentemente, têm importado modelos semelhantes aos adotados pelas escolas de direito dos Estados Unidos, conhecidas como “school laws”:  afirmam que suas matrizes se baseiam em universidades renomadas, como Harvard e congêneres, e que se constitui como uma proposta inovadora para o ensino jurídico.

Fachada da Faculdade de Direito de Recife, uma das primeiras do país

Trata-se de um processo de school [law] rização do nosso direito, evidenciando uma tentativa de performance do modelo de ensino estadunidense, enunciada de forma caricata e fetichista. Custa-me crer que essas escolas estejam realmente a copiar Harvard. Até onde se sabe, trata-se de uma universidade que, a partir da mobilização dos sujeitos subalternizados daquele país, aprendeu a valorizar a diversidade, justamente por compreender que a pluralidade de ideias e de origens pode ser economicamente mais rentável e, em termos acadêmicos, mais promissora. Não é o que se vê por aqui, diante da acriticidade às estruturas desmobilizadoras do nosso direito e cuja única inovação não costuma ultrapassar textos e aulas em inglês: just it!

Não nos enganemos com as supostas novidades das nossas school law’s, suas numerologias, meritosos currículos docentes, alvas pautas de pesquisa e corporalidade nórdica de seus discentes: não há transformação do ensino jurídico sem abertura para a diversidade, principalmente que esteja aberta para discutir o Direito das Relações Raciais, campo jurídico que se propõe estudar não apenas os efeitos do racismo, mas propor medidas antirracistas capazes de extinguir ou amenizar as sequelas de quase quatro séculos de escravização e opressão a povos indígenas e população negra.

A transformação do direito brasileiro passa pela reformulação do ensino jurídico e de suas escolas. No entanto, uma carroça sempre será uma carroça e não adianta chamá-la de Ferrari. Para acompanhar a História, não precisamos de um veículo importado e particular. Há outras conduções: bondes e trens, por exemplo, simbolizam bem a ideia de espaços coletivos de transformação, não necessariamente consensuais, mas seguros, onde os sujeitos possam dialogar e ter a expectativa mínima de usufruir das mesmas oportunidades de direitos. Um desses bondes ou trens – pois, vale dizer, há outros – é o Direito das Relações Raciais, espaço fecundo para a discussão e a desconstrução do pacto de silenciamento racial que foi imposto para desmobilizar a luta por direitos dos sujeitos subalternizados.


[1] Ressalto que a inversão da expressão Law School por school law é proposital, a fim de chamar atenção para o velho vício de mau copismo de nossas elites, como afirmava Guerreiro Ramos.

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