3ª Turma

A demonização do Habeas Corpus e o contágio punitivista

A pós verdade e, em consequência, o punitivismo, não devem ser admitidos, de qualquer modo, como argumento jurídico.

Foto: Christiano Antonucci
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No Brasil da pós-verdade, há quem acredite que o conhecimento jurídico e os direitos fundamentais são empecilhos na busca pela “justiça” e ao “combate à corrupção”. Dentro desse contexto, observa-se o fenômeno que poderia ser chamado de “criminalização da promoção dos direitos fundamentais”, principalmente no que diz respeito à liberdade e, consequentemente, ao uso do remédio constitucional do Habeas Corpus (HC).

Com a ascensão da doutrina lavajatista, verificou-se, na terra da jabuticaba, um desprestígio à Carta Constitucional. Exemplo disso é a confusão jurisprudencial no caso da execução provisória da pena, que após de três anos de controvérsia, foi solucionada pelo Supremo Tribunal Federal. Ademais, percebe-se que o uso de práticas como a condução coercitiva e a prisão preventiva (quando interminável) têm sido/foram utilizadas de modo a violar a liberdade e infringir a duração razoável do processo, sob argumento de contenção de impunidade. 

Fato é que, a referida “sensação de impunidade” se mostra, nos dias de hoje, como argumento-chave no combate ao próprio direito, já que essa tem relativizado garantias fundamentais e, por conseguinte, aumentado o arbítrio estatal. Isso pode ser ratificado pela legitimação de condutas flagrantemente inconstitucionais, como: a execução provisória, a defesa do pacote anticrime de Sérgio Moro e, até mesmo, denegação de Habeas Corpus.

Dessa forma, há de se destacar que sensação (seja ela de impunidade ou inseguraça) não é conceito jurídico, principalmente quando se envolve direito penal e encarceramento.

A partir disso, sublinha-se que tal argumento se combate com informações, dados representativos da realidade social e da própria situação carcerária brasileira.

No contexto do punitivismo exacerbado, é importante destacar atuações de magistrados que exercem a prática de jurisdicional dentro dos limites previstos na Constituição Federal. João Marcos Buch, Marcelo Semer, André Nicolitt, Luís Carlos Valois, Rubens Casara, Alexandre Morais da Rosa, Kenarik Boujikian e, até mesmo, Gilmar Mendes são mal vistos ao valorizarem a Carta Federal, a liberdade, a dignidade da pessoa humana (em especial, a do preso) e o sistema acusatório.

O caso de João Marcos Buch é um dos mais recentes e alarmantes à luz do sistema acusatório brasileiro. O magistrado da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional de Joinville, em outubro deste ano, foi impedido de atuar no processo de execução penal de um dos presos de sua jurisdição em razão ter emprestado o seu celular para que o detento fotografasse as celas da Penitenciária Industrial. O caso ocorreu durante a vistoria conduzida por João, decorrente de uma denúncia sobre as condições precárias do local e tornou-se emblemático por envolver garantias fundamentais dos presos, especialmente quando ligadas às condições físicas do presídio.

A contradição do caso demonstra a maneira como o sistema acusatório vem sendo contornado no Brasil. Conforme o juiz dialoga com a acusação, o fato é visto como garantia da contenção da impunidade, por outro lado, se o magistrado se preocupa em garantir direitos aos encarcerado, torna-se suspeito em razão do envolvimento com o preso. 

Dentro desse cenário, é importante chamar a atenção para o problema prisional brasileiro, em que se tem 41,5% dos presos como provisórios, o que totaliza 337.126 pessoas. Tal dado pode ser reduzido, por exemplo, com mutirões carcerários, tais como o promovido pelo Ministro Gilmar Mendes em 2009.

Ademais, ressalta-se que o magistrado em questão, quando concede Habeas Corpus, é perseguido pelas manchetes impactantes e pelo sensacionalismo exacerbado, uma vez que não há a análise meritória de suas decisões. O HC 151.057, o qual envolve Adriana Ancelmo, é um exemplo disso. Ninguém demonstrou, por exemplo, que o resultado prático da decisão poderia ser visto como um avanço jurisprudencial no âmbito da Suprema Corte, uma vez em que o Ministro concedeu a prisão domiciliar em garantia à maternidade, à infância, à dignidade da humana com o fim de priorizar o bem-estar da criança. 

O juiz João Marcos Buch durante uma fiscalização na Penitenciária Industrial de Joinville.

Diante de tal cenário, considerando que existe a construção da opinião social de que o Habeas Corpus é utilizado como ferramenta de combate à impunidade, é importante nos questionarmos: qual é a finalidade do remédio constitucional? 

Segundo a Carta Federal, em seu Art. 5º, LXVIII, o HC deve ser impetrado quando: “(…) alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Isso nos dá a segurança para apresentar as palavras que o Procurador da Lava-Jato, Roberson Pozzobon, escreveu: “dias melhores virão, de um Brasil com menos corrupção e impunidade” e ainda complementa: “e com isso, INFELIZMENTE, o Brasil ganha uma nova expressão idiomática: “Feliz como um condenado (..)”. Por outro lado, destaca-se a defesa de sua dissertação de Mestrado (p. 113), apresentada na PUC-PR em 2010, quando esse sustentou que: “(…) a idéia de democracia nos dias de hoje é indissociável do respeito ao estatuto jurídico de direitos e garantias constitucionais”.

Em entrevista à rádio CBN em agosto de 2018, o também Procurador da Lava-Jato Deltan Dallagnol criticou o STF, no que diz respeito à concessão de HCs: “Agora o que é triste ver (…) é o fato de que o Supremo, mesmo já conhecendo o sistema e lembrar que a decisão foi 3 a 1, os três mesmos de sempre do Supremo Tribunal Federal que tiram tudo de Curitiba e que mandam tudo para a Justiça Eleitoral e que dão sempre os habeas corpus, que estão sempre formando uma panelinha assim que manda uma mensagem muito forte de leniência a favor da corrupção” (“os três” é uma referência aos Ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes). Da frase em questão, observa-se que o Procurador, conhecido por pedir dicas a Moro, reproduz a frase “mesmo já conhecendo o sistema”, ou seja, a lógica lavajatista, outra vez, demonstra-se contrária à lógica do Estado de Direito e às garantias fundamentais, uma vez que justifica as arbitrariedades do “meio” com o “fim” da citada contenção de impunidade.

 

É importante resgatar, neste momento, a discussão em torno da concessão de HCs, no âmbito das passadas “10 medidas para o combate à corrupção”, propostas pelo Ministério Público Federal. O texto proibia a concessão de HCs automaticamente pelo juiz (de ofício), em caráter liminar e sem prévia requisição de informações ao promotor ou procurador natural. Além disso, o remédio constitucional não poderia mais discutir nulidade, trancar investigação ou processo criminal em curso. Em resposta ao projeto, Gilmar Mendes intitulou-o como autoritário e realizou o seguinte questionamento: “(…) será que as pessoas que lá no Viaduto do Chá assinaram esses documentos correriam o risco com esse modelo? Tinham consciência de que estavam aprovando isso? Claro que não. Vamos ser honestos. Portanto, não venham com o argumento de chancela de 2 milhões de pessoas (…)”, disse.

Assim, sempre haverá a indagação: “conhecendo o sistema”, como garantir uma justiça que poderia ser chamada de eficaz frente às dificuldades brasileiras? Diante de tal dúvida, é importante e necessário reanimar as previsões constitucionais, além de reiterar que o autoritarismo, a retirada de direitos ou a limitação do uso do Habeas Corpus não podem ser argumento que busquem a eficiência judicial. Em sentido contrário, ao utilizar tais práticas, incorre-se na persistência dos atuais problemas e, dada a seletividade característica do sistema penal brasileiro, tem-se que tais arbitrariedade irá alcançar, mais cedo, ou mais tarde, a população marginalizada, acarretando em mais prisões e em maiores problemas.

No Estado Democrático de Direito é necessário que o direito seja separado da emoção. Aplicar a norma ao caso concreto não é questão de fé ou convicção, ao contrário, é necessário que garantias fundamentais sejam asseguradas, independente da circunstância em que se encontra o acusado. Isto é, a pós verdade e, em consequência, o punitivismo, não devem ser admitidos, de qualquer modo, como argumento jurídico.

Lênio Streck, em sua fala no Seminário Política, Democracia e Justiça, na Câmara dos Deputados, em 26 de novembro de 2019 foi assertivo ao proferir a seguinte frase: “(…) eu fico impressionado que tem gente da área jurídica que são contra garantias, seria como os médicos fazendo passeatas contra antibióticos”. Pois bem, ao fim, é sempre bom prescrever aos juristas doses mínimas de respeito às garantias fundamentais e razoabilidade no exercício da jurisdição, sob pena de serem contagiados pelo vírus do punitivismo, altamente disseminado pela sociedade.

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