Mundo

Quebrando o silêncio

O tratado sobre armas é o primeiro instrumento global a regular um comércio estimado em US$ 70 bilhões anuais

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Por Daniel Mack

 

Na Assembléia Geral das Nações Unidas impera um silêncio sepulcral. Além do orador da vez, representante de seu governo, nem um pio. Nada de reações, palmas, assovios. Mas duas semanas atrás, a regra foi quebrada – com alívio. Em 2 de abril, dezenas de representantes da sociedade civil – e de muitos governos – irromperam em gritos de celebração e longa salva de palmas: acabava de ser aprovado o Tratado de Comércio de Armas (Arms Trade Treaty, ou ATT).

Não era para menos: o ATT é o primeiro instrumento global a regular o comércio de armas e munições, estimado em mais de 70 bilhões de dólares anuais. Parece ‘primeiro de abril’, mas até aquele dia não havia qualquer regulação global sobre tais produtos perigosos, que muitas vezes abastecem ditadores, inflamam conflitos ou chegam facilmente às mãos de homicidas.

De maneira inédita, se estabeleceu em nível mundial a conexão de responsabilidade entre a exportação de armas e os potenciais efeitos humanitários nefastos que as mesmas podem ter. Bem implementado, o ATT evitará transferências “irresponsáveis” através de análise de risco sob o prisma de critérios como respeito aos direitos humanos e ao direito internacional humanitário, uso em terrorismo ou crime organizado, e probabilidade de desvio, dentre outros.

Da abstração diplomática para o mundo real: em vigor, o ATT proibiria a Rússia de vender armas para o ditador Bashar Assad enquanto seu regime se ocupa do dantesco massacre da população síria, que já chega a 70 mil mortes. À época, o chanceler russo dizia que seu país não estava “violando nenhuma lei internacional”. Tinha (e tem) razão… até que entre em vigor o Tratado, provavelmente em um ou dois anos, após sua 50ª ratificação.

A votação final foi avassaladora: 155 países a favor (incluindo o Brasil e os Estados Unidos, maior exportador de armas do mundo), 22 abstenções e só três votos contrários: Irã, Coréia do Norte e Síria. Não surpreende que a Síria faça parte da minoria almejando bloquear o Tratado: para um regime que massacra civis, e precisa comprar armas e munições para fazê-lo, o status quo interessava.

O alívio ao final da votação reflete sete anos de trabalho nos corredores e plenários da ONU, que poderia ter culminado na negociação de julho de 2012 ou na Conferência Final do ATT concluída no final de março – mas ambas falharam em lograr consenso.

A explosão sonora na ONU foi fruto de mais de uma década de esforços da sociedade civil internacional, agrupada sob a campanha Control Arms, no Brasil liderada pelo Instituto Sou da Paz. Quando a campanha começou em 2003, somente três países eram publicamente a favor de um ATT. Não foram poucos os governos que usaram termos como “utópico” ou “quixotesco” para descrever a idéia, que surgiu justamente da sociedade civil e de um grupo de laureados do Prêmio Nobel liderados pelo ex-presidente da Costa Rica, Óscar Arias. Dez anos depois, apenas três países foram contra o ATT.

Apesar de absolutamente histórico, o ATT tem suas imperfeições, originadas da necessidade de tentar agradar a 193 países simultaneamente. Dentre as principais estão seu escopo, que deveria incluir absolutamente todas as armas convencionais mas permite a exclusão de algumas; o tratamento dado às munições, que não obrigará países a fornecer informes sobre suas exportações; e a falta de transparência obrigatória – os informes anuais sobre transferências que os Estados devem fornecer ao Secretariado do ATT (a ser criado) não precisam ser disseminados de forma pública.

Não obstante suas limitações, o ATT tem potencial para diminuir os obscenos níveis de violência armada e conflitos armados. Certamente não será panacéia, mas com mais de meio milhão de mortos anuais pela violência armada ao redor do mundo, qualquer passo significativo na direção correta é muito bem-vindo.

Mas como bem sabemos, só lei no papel não resolve. A implementação do ATT em cada país, no dia-a-dia, é que vai definir seus resultados. Não coincidentemente, frases bastante repetidas no plenário da ONU após o voto foram variantes do “isto é somente o começo” proferido pela delegação do México em nome de 96 países que apoiaram fortemente o Tratado.

Mas e o Brasil neste histórico passo adiante? Digamos que poderia ter feito mais barulho. Por certo, a posição brasileira durante as negociações não foi das mais ambiciosas. Mesmo assim,  a delegação brasileira teve atuação positiva, mas longe de ser protagonista. Por algumas vezes em plenário levantou pontos importantes, mas não brigou por eles.

Tal postura passiva, bastante influenciada pelo Ministério da Defesa, fica aquém do ideal não só em termos diplomáticos e geopolíticos (‘Brasil potência emergente’, candidato ao Conselho de Segurança se reformado, sexta maior economia do mundo ) – mas especialmente se considerarmos que, em termos de armas e violência, poucos países tem tanto know how.

 

Nosso país é campeão mundial em mortes por armas de fogo (mais de 35 mil anuais) – e tem grandes produtores e exportadores de armas. Mesmo que em termos de grandes equipamentos bélicos o Brasil ainda seja café pequeno – apesar de esforços e subsídios do governo federal – no caso das armas (e munições) que mais matam, o Brasil é um ator de relevância global.

 

Entre os anos de 2000 e 2006, por exemplo, o Brasil foi o terceiro maior exportador de armas pequenas do mundo. Praticamente monopólios, as empresas Taurus (armas) e CBC (munições), de acordo com as próprias, são respectivamente a “maior fabricante de armas curtas do mundo” e “um dos três maiores produtores de munição do mundo”. Mesmo assim, não há no momento a mínima transparência sobre suas exportações, que devem ser autorizadas pela Defesa e o Itamaraty com base em um documento secreto (PNEMEM) da ditadura militar.

 

Neste sentido, o ATT representa também uma oportunidade de demonstrar que o Brasil evoluiu. A implementação de fato do Tratado depende de decisões nacionais – que podem ser mais ou menos robustas. Conforme dito por várias delegações, o ATT determina “um chão, não um teto” para o comércio internacional de armas. Ou seja, estabelece as obrigações mínimas de todos os países, mas não impede medidas ainda mais rígidas e eficientes.

 

Assim sendo, o Brasil deve converter-se em um dos primeiros países a assinar o acordo (o ATT abre para assinatura no dia 3 de junho na ONU em Nova York), e esperamos que nosso Congresso Nacional o ratifique o quanto antes. Ademais, é essencial que o Brasil estabeleça em sua legislação e prática nacional, que precisam ser adaptadas, uma visão mais transparente e humanitária sobre a exportação de armas.

Um ótimo começo seria comprovar que estava falando sério na Assembléia Geral quando afirmou que teria preferido um ATT mais robusto, com inclusão completa de munições no escopo, proibição de transferências a atores não-estatais, e exigência de certificados de usuário final para todas as transferências de armas.

 

Se determinar normas nacionais ainda mais responsáveis que o denominador comum do ATT, histórico mas mínimo, o Brasil quebrará o silêncio que envolve sua produção e exportação de armas – e merecerá, também, uma ruidosa salva de palmas.

 

Daniel Mack é mestre em relações internacionais pela Universidade Georgetown (EUA) e Coordenador Internacional do Instituto Sou da Paz.

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