Mundo

Os traumas dos jovens que cruzaram o Mediterrâneo

Um em cada sete migrantes que chegam à Itália é menor de idade, e muitos estão desacompanhados e traumatizados no corpo e na mente

Migrantes aguardam para desembarcar de navio italiano em Salerno, em 26 de maio. A maioria é formada por jovens
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Por Doris Pundy

Amadou [nome alterado pela redação] conseguiu: ele está em segurança, mas ainda não consegue acreditar. Inseguro, o jovem de 17 anos está sentado na sala comunitária do lar para refugiados menores de idade desacompanhados de Scicli, no sul da Sicília. Ele aperta os braços em torno do peito e, nervoso, balança os pés, enquanto os olhos vagueiam pelo aposento.

“Vocês não conseguem imaginar o que significa para mim estar aqui e não ter mais que estar na Líbia”, comenta em voz baixa. “A Itália é como o paraíso para mim!” Ao pronunciar “paraíso”, um sorriso fugaz atravessa seu rosto. “Estou tão agradecido”, diz, balançando a cabeça. Após uma breve pausa, baixa os olhos: “Nem sei como eu sobrevivi. Deus deve ter me protegido.”

Do Gâmbia à Itália, passando pela Líbia

Há três semanas, Amadou vive na Casa delle Culture da localidade turística. O lar para menores da igreja luterana foi inaugurado há pouco mais de dois anos, quando a lotação das instituições estatais começou a se esgotar. Ele se situa a cerca de 20 quilômetros do porto de Pozzallo, onde o adolescente africano pisou solo italiano pela primeira vez, em meados de junho.

O lar se destina, em primeira linha, a meninas e jovens mães, porém abrem-se exceções para rapazes carentes de proteção. “Eu estava completamente estressado quando cheguei à Itália”, conta Amadou. Já no centro de recepção, ele despertou a atenção de um dos médicos, que o enviou a um psicólogo.

“Eu tinha tanto medo de encontrar esse psicólogo. Tinha medo de apanhar de novo. Eu não sabia o que me esperava.” Na Líbia, por diversas vezes ele foi raptado e maltratado, tendo que esperar mais de dois anos até conseguir embarcar num dos barcos em direção à Europa. “Toda vez que vejo uma pessoa de pele clara, tenho medo de que vão me bater novamente.” De início, até o contato com os cuidadores do lar era difícil.

Refugiados Refugiada é atendida por integrante da Cruz Vermelha italiana em 26 de maio

Mais velho de quatro irmãos, Amadou tinha 14 anos ao deixar sua aldeia natal, Bakau, no Gâmbia, em outubro de 2014. Alguns conhecidos seus já haviam partido para a Europa. O pai, que apoiou a decisão, tinha até um bom emprego, mas às vezes ficava meses sem receber. A mãe cuidava da casa e dos irmãos mais novos. “Como filho mais velho no Gâmbia, você precisa ter sucesso e ajudar os seus irmãos”, comenta o jovem.

Sistema de acolhimento nos limites

Nos primeiros seis meses de 2017, chegaram à Itália pelo Mar Mediterrâneo 85 mil refugiados, entre os quais mais de 10 mil crianças. Dois terços de todos os migrantes da África aportam na Sicília, mas apenas uma parcela fica na ilha sul-italiana.

“Quando um navio com resgatados chega à Sicília, já há ônibus esperando no porto para levá-los aos abrigos no continente”, explica à DW Marco Rotunno, do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur). Na verdade, o sistema italiano funciona bem, só que está nos limites de sua capacidade diante do número crescente de migrantes que chegam.

Uma dificuldade é reconhecer, no curto período entre o resgate em alto-mar e o prosseguimento da viagem para os abrigos de refugiados, quem precisa de cuidados especiais, frisa Rotunno. “As crianças são muito bem protegidas pela lei, na Itália, mas por vezes é difícil determinar a idade.” As meninas costumam se apresentar como maiores de idade, e aí convém examinar bem o caso, pois muitas vezes se trata de tráfico humano.

“Vontade de sobreviver pode ser mais forte que o corpo”

A fim de poder diagnosticar mais rapidamente qual é o estado físico e psíquico dos migrantes, as autoridades italianas e o Acnur mantêm cooperação estreita com as organizações que resgatam os refugiados em alto-mar.

“A vontade de sobreviver costuma ser mais forte do que o corpo”, observa o médico Craig Spencer, da ONG Médicos Sem Fronteiras, que trabalha em navios de salvamento no Mediterrâneo, como o MS Aquarius. Ao serem finalmente resgatados, os traumas e ferimentos físicos de muitos migrantes pioram rapidamente.

Refugiados Refugiado gambiense Amadou tem cronograma cheio na Casa delle Culture, na Sicília (Foto: Doris Pundy / DW)

Alguns trazem vestígios de maus tratos e tortura pelos traficantes líbios: ferimentos abertos infeccionados, por vezes até de facadas ou tiros, diz Spencer. Mulheres e crianças tampouco são poupadas. “Entre as mulheres e meninas que salvamos, 80% foram vítimas de violência sexual.” Os meninos costumam portar cicatrizes. O migrante desacompanhado mais jovem que Spencer tratou tinha 7 anos.

O medo no caminho de uma vida normal

Muitas vezes Amadou lamentou ter partido para a Europa: “Se eu soubesse o que me esperava na Líbia, nunca teria saído de casa.” O contato constante com o pai, pelo celular, o ajudou a superar as dificuldades. Desde que chegou à Itália, ele fala diariamente com seus pais. “Eu não ia aguentar não falar com a minha mãe e o meu pai. Eles me mantêm vivo.”

Em seu novo “paraíso”, o jovem gambiense tenta se reencontrar com a vida. De manhã cedo, antes que fique quente demais, ele sai para correr em Scicli, mais tarde frequenta os cursos de trabalhos manuais e de italiano, no meio tempo tem consulta com o psicólogo.

A maioria das crianças e adolescentes fica apenas poucas semanas na Casa delle Culture, até ser transferida para os abrigos no continente. Amadou provavelmente permanecerá mais tempo. “Quando penso no meu futuro, eu só tenho medo”, confessa o jovem refugiado.

Na Líbia, ele teve vivências terríveis, pelas quais espera nunca mais passar. “Quero reaprender a frequentar uma escola normal, e aí estudar informática e relações internacionais.” Antes de tudo, no entanto, ele vai ter que aprender a lidar com o próprio medo.

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