Mundo

Nova Orleans e Boston: dois pesos e duas medidas da violência americana

Os atentados revelam ser bem mais fácil para os americanos identificarem os inimigos externos do que os internos

Imagem do tiroteio em New Orleans
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De Nova York

Quando começou o tiroteio na parada do Dia das Mães da rua Frenchmen, em Nova Orleans, eu já estava a bordo do avião, de volta para Nova York.

Estava na cidade a trabalho e havia passado a noite anterior, em ótima companhia, na rua famosa por apresentações musicais – de jazz, mas também hip-hop, punk e blues – tanto dentro dos bares locais, um atrás do outro, onde só se paga o que se consome, quanto nas amplas calçadas, aproveitando os grupos de rua, presença obrigatória em um calendário improvisado que começa no Mardi Gras invernal e vai até setembro.

Na maioria dos voos domésticos nos EUA já é possível se conectar na rede, por uma taxa que varia de 12 a 18 dólares, dependendo do trecho e da companhia aérea, mas como a viagem era em um domingo, com apenas duas horas e quarenta minutos de duração, a maioria dos passageiros preferiu recuperar o sono perdido na orgia do sábado de temperatura amena ou mergulhou em um filme nos laptops abertos aos borbotões. Muitos, especialmente os mais jovens, buscavam um ângulo melhor para observar qualquer movimento do ator Jeremy Allen White, sucesso na televisão a cabo daqui por conta de seu Lip Gallagher, um dos protagonistas da versão americana do seriado britânico “Shameless”.

Somente depois de os celulares voltarem a ser ligados, já na pista do aeroporto La Guardia, viajantes e tripulação, atordoados, buscaram informações sobre os feridos e tentaram entender o que de fato acontecera na tarde de domingo na cidade mais festeira dos EUA.

A tarefa não foi fácil. Ao contrário da exaustiva cobertura da imprensa americana e mundial ao atentado terrorista em Boston, os 19 civis feridos, incluindo duas crianças de 10 anos e três adultos ainda em estado grave nos hospitais da cidade, não receberam o mesmo tratamento de tragédia nacional dado aos acontecimentos – terríveis – na Nova Inglaterra.

O FBI se apressou em afirmar que não havia nenhuma suspeita de ato terrorista, apresentando o episódio, oficialmente, como “um fato típico da violência de rua de Nova Orleans”. Como escreveu Hamilton Nolan no site Gawker, “na América, há vilões e vilões”.

O leitor da CartaCapital há de se lembrar do tratamento criminoso dado pelo governo Bush II aos trabalhos de resgate e recuperação da cidade depois da tragédia do furacão Katrina em 2005. Em seguida vieram os escândalos de superfaturamento envolvendo os programas de recuperação urbana da cidade, o aumento de crimes – com 199 assassinatos/ano para uma população de 340 mil habitantes, quase 70% afro-americana, Nova Orleans bateu em 2011 o triste recorde de cidade norte-americana com mais mortes violentas per capita –, o desastre ecológico do Golfo do México causado pela BP devastador para a indústria pesqueira e agora os tiros a esmo em meio a uma das muitas manifestações culturais a céu aberto que fazem da metrópole da Louisiana uma das mais ricas do continente.

“A tentação natural é esta mesmo, de riscar a cidade do mapa de novo, de apresentá-la como um caso perdido, infestada de criminosos, um buraco quente ameaçado pelos furacões que deveria ser deixada ao léu”, escreve, na “The Nation”, Mark Hestgaard, um jornalista que não só estava na parada como levou um tiro na perna. Outra repórter sofreu mais: Deborah Cotton foi parar na mesa de cirurgia para o transplante de um dos rins.

Minha colega Pearly Tan, que estava, como eu, na cidade para entrevistar o elenco de “Truque de mestre”, produção parcialmente rodada na cidade, com Jesse Eisenberg, Michael Caine e Morgan Freeman, com estreia nos cinemas brasileiros em julho, também foi testemunha ocular do surto de violência. “As pessoas que estavam na frente na banda sequer ouviram os tiros e seguiram em frente. Foram muitos tiros, mais de dez, com certeza, e foi uma correria só entre os que estavam atrás, como eu. Um homem me segurou e me mandou correr, todos corriam em ziguezague. Muitos se refugiaram em bares e boa parte das pessoas estavam fantasiadas, uma tradição nas paradas dos Dias das Mães na cidade”, conta a repórter do The New Paper, da Singapura.

Hestgaard, por sua vez, trata do poder de atração das paradas guiadas pelas Brass Bands e de como as celebrações em datas que reúnem toda a família acabam atraindo bandidos interessados em fazer um estrago maior. A ‘segunda linha’, onde o tiroteio se deu é, a grosso modo, algo como a concentração de um bloco carnaval. É ali que ficam os que curtem os sopros e querem de fato dançar. O estrago maior – “todo mundo me diz que foi um milagre ninguém ter morrido, inclusive eu, que estava na linha de tiro”, diz Hestgaard – remete à questão proposta por Hamilton Nolan: por que dois jovens com dificuldade de se identificar com a cultura americana e fascinados pelo extremismo islâmico são apresentados como terroristas ao explodirem uma bomba em um evento esportivo em Boston e um grupo de jovens americanos em busca de notoriedade atirando a esmo em uma parada de celebração das famílias da vizinhança são resultado da ‘cultura de crime de Nova Orleans’?

O paralelo com Boston – onde 55% da população se identifica como ‘caucasiana’ – é tentador até em detalhes aparentemente secundários: assim como no caso dos irmãos ‘terroristas’ da Nova Inglaterra, em Nova Orleans as imagens que levaram à identificação de um dos prováveis atiradores também foram resultado da onipresença das câmeras instaladas em lojas, casas noturnas e postos de gasolina na rua Frenchmen. Sua disseminação imediata na internet foi crucial para a identificação e caçada a um jovem de 19 anos, Akein Scott, apontado como um dos suspeitos de atirar a esmo no meio da parada. O outro, exatamente como no caso de Boston, era o irmão mais velho de Akein.

A imagem é chocante. Mostra um homem negro, forte, arma em punho, de costas, atirando no meio do grupo que seguia atrás da banda. Abre-se um clarão na direção mais provável do disparo do homem armado e as pessoas – em sua maioria negras – se abaixam e buscam proteger umas às outras. Scott foi preso, em março, por tráfico de heroína – uma epidemia recente nos EUA – e posse ilegal de arma de fogo. Saiu da cadeia em abril, depois de pagar fiança. Ele, e Shawn Scott, de 24 anos, foram presos na quinta-feira.

“Foram dois eventos públicos. Duas terríveis tragédias. Um ato de violência recebeu tratamento de luxo da mídia por semanas a fio e levou políticos e comentaristas a fazerem proclamações indignadas. O outro é relegado à interpretação de que é assim mesmo que a banda toca e rapidamente esquecido. As vítimas caídas ensanguentadas no chão da rua Frenchmen não veem esta distinção. Para quem a sofre, violência é violência. Para o restante, é uma ferramenta de retórica, aqui usada ao bel-prazer do triunfalismo americano”, escreve Nolan.

Os atentados em Boston e Nova Orleans revelam ser bem mais fácil para os americanos identificarem os inimigos externos, os fundamentalistas islâmicos, categoria herdada da “guerra ao terror”, do que o reflexo mais letal – posto que randômico e numericamente mais danoso – da “guerra às drogas” e do aumento da pobreza na maior economia do planeta. É o que Nolan classifica como ‘crimes de negro’, já que a maioria das vítimas e dos criminosos são afro-americanos. Ele cita os 12 feridos em Baltimore num churrasco e os 10 mortos e 44 feridos em um único fim de semana em Chicago, todos em bairros de maioria negra, como exemplo da violência urbana negligenciada pela mídia, pelos políticos e pela sociedade ianque. O americano típico sabe bem quem é Dzhokhar Tsarnaev, frisa Nolan, referindo-se a um dos irmãos acusados do atentado durante a Maratona de Boston, mas não tem a menor ideia de que o número crimes violentos nos EUA é hoje inferior à segunda metade dos anos 90, e, no entanto, é cada vez mais concentrado em bolsões de depressão econômica, localidades com mais pobreza e desemprego.

Na calmaria nervosa do La Guardia, os passageiros do voo da Delta Airlines respiram aliviados. Não há parentes ou conhecidos entre os feridos. No alto-falante, um aviso nos chega antes de as bagagens serem liberadas: “Todas as malas vindas de Nova Orleans serão levadas para inspeção na saída do terminal. Agradecemos a sua paciência”.

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