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Hiroshima: como um ataque nuclear virou símbolo de “guerra justa”

Passados 72 anos dos bombardeios, ainda triunfa a versão dos EUA de que recorrer às armas atômicas era a única alternativa. Inclusive no Japão

Hiroshima, 6 de agosto de 1945: os horrores do ataque ficaram escondidos por muito tempo
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Em 6 de agosto de 1945, o presidente dos EUA, Harry Truman, autorizou o lançamento de uma bomba nuclear em Hiroshima. Três dias depois foi a vez de Nagasaki, o que levou à rendição incondicional do Japão.

Por incrível que pareça, apesar de ter ocasionado a morte de centenas de milhares de seres humanos, com consequências nefastas para a saúde da população, durante décadas o uso das bombas contra duas cidades japonesas densamente povoadas ainda é utilizado, e aceito por parcela considerável de norte-americanos e japoneses (isso mesmo!), para construir uma narrativa triunfal de como se faz uma “guerra justa”.

As bombas, de acordo com essa narrativa, foram necessárias para forçar a rendição de um “inimigo fanático” determinado a lutar até a morte e assim salvar milhares de vidas norte-americanas, pois a única alternativa seria invadir o Japão por terra.

A escrita e a reescrita, bem como a aprendizagem e a reaprendizagem da história, são partes de um complexo processo repleto de sobreposições da memória do presente e do passado. O que alguém aprende da história condiciona, de certo modo, as percepções a respeito das questões políticas do seu tempo. Portanto, é sempre necessário voltar para esse acontecimento que marcou definitivamente o mundo que se construiu após a Segunda Guerra e que se conecta com nosso presente.

De acordo com o relato do ex-secretário de Defesa nos governos Kennedy e Johnson, Robert McNamara, no documentário “The Fog of War”, antes de os EUA lançarem as bombas atômicas, o comandante da Força Aérea, o general Curtis LeMay, observou: “Se perdermos a guerra, todos seremos processados como criminosos de guerra”.

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Portanto, não restava outra saída a não ser ganhar a guerra a qualquer custo. LeMay reconhecia explicitamente que o que ele fazia seria considerado imoral apenas se fosse vencido. Mas o que faz com que o mesmo ato, imoral em caso de derrota, não o seja quando se vence? Um dos aspectos mais importantes e, por isso mesmo propositadamente negligenciado, é a forma pela qual foram construídas as narrativas dos vencedores.

A fim de promulgar as novas políticas que desejava impor ao Japão do pós-guerra e tornar a ocupação tão perfeita quanto possível, os EUA empreenderam um esforço sem precedentes para convencer os japoneses e a opinião pública mundial de que agiram corretamente, seja na fabricação de novas narrativas ou na censura imposta. As autoridades norte-americanas temiam que um debate sobre as bombas pudesse incitar a “agitação pública” contra eles.

As bombas atômicas tornaram-se rapidamente um símbolo do potencial material e das proezas científicas dos EUA. E este símbolo foi ainda mais exaltado por contrastar acentuadamente com o suposto atraso material do Japão. Enquanto os norte-americanos aperfeiçoavam as armas nucleares, o governo militarista do Japão exortava os “vassalos” do imperador a levar lanças de bambu e lutar até o fim para defender a pátria. 

De outro lado, o general Douglas MacArthur, autoridade máxima do governo de ocupação, controlava cuidadosamente, por meio de boletins complacentes e oficialmente aprovados, todo e qualquer material enviado pelos correspondentes internacionais.  Um dos primeiros relatos da mídia ocidental dos efeitos da radiação foi realizado pelo jornalista australiano, W.Burchett (setembro de 1945), no qual fazia uma descrição gráfica das vítimas da “praga atômica” para o London Express. A equipe de mídia do governo de ocupação agiu imediatamente para tentar desacreditar o jornalista, ao mesmo tempo em que sua câmera com filmes sobre Hiroshima foi literalmente confiscada.

LeMay: o general sabia que, em caso de derrota, seria considerado um criminoso de guerra (Foto: Wikimedia)

As autoridades norte-americanas começaram a “flexibilizar” as restrições sobre a publicação de relatos pessoais de sobreviventes somente no fim de decada de 1950. E apenas seis anos após o lançamento das bombas atômicas é que as associações acadêmicas japonesas puderam se envolver de forma independente na investigação sobre as consequencias da irradiação nuclear.

Nos 60 anos do ataque a Hiroshima e Nagasaki, em 2005, foi realizada uma ampla pesquisa com os residentes do Japão e dos EUA a respeito de suas percepções sobre os acontecimentos. Uma das perguntas explorava o debate sobre as razões para aprovar o uso da bomba. Dos entrevistados, 64% dos norte-americanos e 61% dos japoneses responderam: por ter acelerado o fim da guerra. Isso se deve ao fato de que, além da censura aos milhares de textos e imagens, e das narrativas fabricadas com cumplicidade das elites japonesas, quanto mais jovens os entrevistados, menores são os conhecimentos sobre as bombas.

 A pesquisa também procurou avaliar o pensamento sobre manter o legado vivo à medida em que as vítimas da bomba e seus efeitos subsequentes envelhecem e as memórias ficam mais fracas. Uma questão versava sobre se a experiência da bomba atômica deveria ser transmitida às sucessivas gerações: 83% dos habitantes de Hiroshima responderam: “sim, deve ser ensinado”. Resultado consideravelmente superior aos 67% que deram a mesma resposta na pesquisa de 2000.

Isso pode ser um sinal de que, por surgir uma sensação de crise na percepção de que as novas gerações estão se esquecendo dos fatos, setores da sociedade japonesa parecem estar mais conscientes da necessidade de manter vivo o legado da experiência da bomba.

No filme japonês MacArthur’s Children, de 1984, direção de Masahiro Shinoda, há um alerta bastante significativo dessa batalha pelas narrativas nas palavras de um professor de escola primária que se dirige aos seus alunos em alto e bom som: “Nossas almas não estão sob ocupação”. 

* Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e pesquisador do INEU ( Instituto de Ciência e Tec. para Estudos sobre os EUA.)

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