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“Essas memórias sempre vão me perseguir”

Quase aos 90, sobrevivente do Holocausto decide publicar suas lembranças

"Depois de um tempo, estar em um ambiente como aquele entorpece seus sentidos, você vê tudo como normal"
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Por Sarah Judith Hofmann

Em 2013, poucos anos antes de completar 90 anos, o sobrevivente do Holocausto Samuel Pivnik publicou o livro Survivor: Auschwitz, the Death March and my Fight for Freedom (Sobrevivente: Ausschwitz, a marcha da morte e minha luta por liberdade, em tradução livre).

A tradução da obra para o alemão chega agora às livrarias da Alemanha. Em entrevista à DW, Pivnik conta que começou a pensar em colocar suas lembranças no papel depois de insistentes pedidos de um amigo: “Ele disse que eu tinha a obrigação de contar minha história para a humanidade.”

DW: O senhor tem 90 anos. Por que decidiu tão tarde contar sua história em um livro?

Samuel Pivnik: Foi só no final da década de 90 que comentei seriamente a pensar na possibilidade de escrever minhas memórias. Outros sobreviventes que conheci já haviam escrito livros.

Realmente não havia interesse em nossas histórias imediatamente após a guerra. Até que eu fui abordado por um amigo meu em 1999, o artista David Breuer-Weil, que me pediu muito para eu escrever. Ele disse que eu tinha a obrigação de contar minha história para a humanidade, para que as pessoas pudessem aprender lições que possam ajudar a impedir que elas caiam de novo nas profundezas da perversidade. Então, eu comecei o processo de forma séria. Até que em 2011 meu agente me apresentou a um ghostwriter profissional chamado Mei Trow. Como resultado do meu trabalho com ele, o livro começou a interessar grandes editores.

DW: Pelo fato de sua cidade natal, Bedzin, estar localizada a cerca de 50 quilômetros de Oswiecim, onde ficava o campo de concentração de Auschwitz, o senhor e a sua família estiveram entre os poucos que ouviram rumores sobre o campo de extermínio já no verão de 1942. O que o senhor ouviu sobre o lugar e o que o senhor acreditava ser verdade?

SP: Eu me lembro de ver trens que atravessaram a nossa cidade puxando vagões de gado com janelas minúsculas em que eu via homens com barbas longas e mulheres olhando para fora. Eles pareciam assustados e desorientados. Também ouvi rumores sobre o campo de extermínio nas proximidades. Mas, na minha ingenuidade inocente – tinha apenas cerca de 14 anos na época – não somei dois e dois. Eu acho que alguém me informou que eles eram prisioneiros russos ou algo desse tipo, e nunca mais pensei nisso de novo.

Nós ouvimos, sim, rumores, mas meus pais se recusaram a acreditar neles. Eles achavam que era impossível e ridículo que seres humanos pudessem construir matadouros em escala industrial para matar outros seres humanos. Meus pais eram pessoas muito decentes, e eu não acho que eles perceberam que era verdade até estarem em sua própria cela da morte, sendo sufocados por Zyklon B.

DW: O número 135913 foi brutalmente tatuado em seu braço em Auschwitz e está nele há mais de 70 anos. Como o senhor o vê agora?

SP: Eu sei que não é algo sobre o qual eu deveria me gabar, mas meu número é muito baixo. Conheço muito poucas pessoas que sobreviveram a Auschwitz-Birkenau com um número menor do que o meu.

Sobreviventes muitas vezes podem entrar em conversas pouco saudáveis, em que comparações são feitas em termos de quem sofreu mais. Alguns dizem que quanto menor o número, mais se sofreu. Obviamente, nem sempre é esse o caso, mas tenho um certo orgulho do meu número.

DW: Em um momento o senhor escreve: “A dor terrível apagou a memória do dia exato”. Não é às vezes complicado lembrar os eventos que ocorreram há mais de 70 anos?

SP: Muitas das minhas memórias desse período são muito claras, mas, obviamente, um dia e uma data exatos de um evento específico é impossível de lembrar para mim. No entanto, se uma atrocidade ocorre na frente de seus olhos, isso inevitavelmente fica impresso na memória. Faço o máximo para não pensar em algumas das coisas que vi, mas é difícil.

Se alguém está tem a cabeça literalmente despedaçada na sua frente, a lembrança do cérebro desse homem saltando do crânio é difícil de se apagar. Ninguém poderia esquecer um personagem como Karol Kurpanik, que descrevi no meu livro. Este homem era um necrófilo, que infelizmente observei em seu elemento quando ele estava conosco, prisioneiros. Ter a oportunidade de quebrar o crânio de alguém e ver a pessoa morrer lentamente era o maior prazer para ele. Essas memórias sempre vão me perseguir.

Depois de um tempo, estar em um ambiente como aquele entorpece seus sentidos; você vê tudo como normal. A dor fica enterrada em algum lugar de seu subconsciente, para surgir muitos anos depois sob a forma de pesadelos horríveis, que ainda me perseguem até hoje.

Auschwitz Crianças sobreviventes de Auschwitz em 1945 (Foto: Wikimedia Commons)

DW: Dá para ver em seu relato que além de detalhar o que o senhor se lembra, o senhor pesquisou muito sobre o que “realmente” aconteceu historicamente. Por que foi importante para o senhor adicionar esse fundo histórico?

SP: Tendo visto o pior em que a humanidade pode se tornar, eu era naturalmente curioso para ter uma perspectiva mais ampla sobre os eventos que eu tinha testemunhado. Eu também acho ser importante colocar minhas experiências em um contexto político maior, para ajudar o leitor a entender o que precisa acontecer para que uma sociedade se torne assim. E espero que ela perceba os sinais antes que seja tarde demais.

O senhor conta a história de Alfred Rossner, responsável por cerca de 10 mil trabalhadores têxteis judeus em Bedzin e que forneceu a parte de sua família documentos que demonstraram que eles fizeram um trabalho estrategicamente importante para o esforço de guerra. O senhor queria mostrar que também havia pessoas humanas durante esses tempos terríveis?

Sim, exatamente. Alfred Rossner era alguém a quem serei eternamente grato. Ele manteve minha família unida e viva por muito mais tempo do que teria sido o caso de outra forma. Ele ajudou meu pai e minha irmã mais velha a trabalhar na sua alfaiataria o maior tempo possível. Certamente, eu queria prestar uma homenagem a ele como um homem de compaixão. Ele era alguém que se importava quando as autoridades estavam tentando dizer à população que certos tipos de seres humanos deveriam ser vitimados e humilhados.

Houve algumas pessoas que arriscaram suas vidas para nos ajudar, a nós, judeus. Outra pessoa foi Killov, que era dono da alfaiataria onde eu trabalhava, assim como seu gerente, o senhor Häuber. Ambos me protegeram pelo tempo que puderam. Essas pessoas eram luzes brilhantes na escuridão.

DW: O senhor é uma das últimas testemunhas do Holocausto. O senhor sente que é um fardo contar sua história para que a geração mais nova saiba o que aconteceu, mesmo depois que todos os sobreviventes se foram?

SP: Eu não chamaria isso de fardo. Nunca fui casado, não tenho filhos. Eu realmente não consegui alcançar muito na minha vida. Estou, portanto, muito satisfeito por ter escrito meu livro, porque finalmente consegui contribuir com algo para a humanidade que terá um valor duradouro.

Fiquei muito satisfeito com o sucesso alcançado pelo livro, e ele foi traduzido para muitos idiomas. Isso me deu um grau de satisfação nos meus últimos anos. Ele preservará a memória de meus amados pais, irmãos, irmãs e almas corajosas como Rossner, Killov e o senhor Häuber.

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