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A complexa crise que explode na Nicarágua sob o governo de Ortega

O país transforma-se em palco de violentos conflitos envolvendo o governo sandinista e opositores

A média é de quatro mortes por dia, diz socióloga da Nicarágua que denuncia violência
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Faltam três anos e meio para Daniel Ortega e Rosário Murillo chegarem ao fim do mandato presidencial para o qual foram eleitos em 2016, com 72% dos votos garantindo a continuidade do projeto sandinista em eleição contestada pelos adversários.

O tempo parece demasiado para parte da sociedade que defende a antecipação do processo eleitoral para 2019 ao considerar o governo responsável pelas mais de trezentas mortes registradas desde o início da crise envolvendo não somente os nicaraguenses, mas sobretudo interesses de agentes externos que estão em jogo no pequeno, mas recorrentemente turbulento país cravado no coração da América Central.

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O novo cenário de disputas, que avança desde abril, foi simbolizado pela imagem de estudantes feridos após a violência causada pela truculência das forças oficiais diante de protestos contra a reforma previdenciária pretendida pela administração central, segundo a versão dos oposicionistas.

O efeito imediato de condenação à postura de Ortega trouxe uma enxurrada de críticas internacionais aos sandinistas, somada à pressão interna contra o casal presidencial que até então liderava uma das nações mais estáveis da região.

A pauta dos protestos mostrou-se rapidamente mais abrangente ao tema relativo à previdência, uma vez que o Executivo recuou dos planos de aumentar em 5% a contribuição para algumas faixas após a repercussão negativa entre os cidadãos.

Mesmo com derrubada da proposta os manifestantes intensificaram a convocação para que as ruas fossem ocupadas a fim de mostrar a necessidade de renovação da política nacional, liderada sobretudo pelo movimento Aliança Cívica pela Justiça e Democracia cujo site na internet oferece as versões em inglês e espanhol.

“Somos formados por um grupo de organizações e cidadãos diversos e heterogêneos, entre eles estudantes, integrantes do setor empresarial, movimento campesino, ativistas dos direitos humanos e cidadãos de região autônoma (…)A aliança dá voz as demandas de milhares de nicaraguenses que clamam por justiça e democracia com objetivo de revisar o sistema político desde a raiz para lograr uma autêntica democracia”,  apresenta-se o coletivo.

Buscando evitar a reedição de um conflito prolongado como da década de 70 e 80, Ortega e Murillo concordaram em definir um amplo Diálogo Nacional, várias vezes interrompido e até o momento com poucos resultados em termos de pacificação uma vez que os chefes do Executivo não se mostram dispostos a abreviar o mandato. Além disso, de acordo com os informes oficiais, muitos dos coletivos antigovernistas seriam financiados por estrangeiros com o objetivo de fragilizar a gestão e depredar o patrimônio público.

“Vivemos uma batalha dolorosa, temos enfrentado uma conspiração de grupos que são instrumentalizados. Vivíamos onze anos de crescimento econômico, de políticas sociais para o campo e a cidade e por isso tínhamos índices de aprovação sem precedentes na historia. Eles não queriam que a revolução continuasse se consolidando com reconciliação e paz e promovem ataques armados e agressão”, defendeu Ortega durante discurso de quase uma hora na área central de Manágua lotada pela comemoração dos 39 anos da vitória da frente sandinista. 

Área central de Manágua lotada pela comemoração dos 39 anos da vitória da frente sandinista (Foto: Difuso)

A queima das chamadas árvores da vida, estruturas metálicas espalhadas pela capital Manágua que representavam de alguma forma o anseio de tornar o país um destino turístico deixando para trás os tempos de guerra, o controle de alguns bairros em determinadas cidades e os saques em estabelecimentos de municípios menores caracterizam algumas das ações protagonizadas ao longo dos últimos dias.

Os sandinistas já haviam chamado a atenção para a tentativa de infiltração de agentes políticos desestabilizadores quando impediram delegações estrangeiras de entrarem no país sob o pretexto de debelar o incêndio florestal na reserva biológica Índio Maiz, de consequências graves para o ecossistema nica.

“A opção preferencial dos pobres se coloca à parte de todas as perversidades do plano terrorista e golpista acompanhado da infame e falsa campanha midiática que uma minoria cheia de ódio quer impor a nossa Nicarágua”, assegurou Rosario Murillo, em declaração transmitida pelo canal 4, como ocorre diariamente.

O desencontro sobre o número de óbitos e a incerteza sobre a origem das agressões acrescenta dúvidas sobre o que realmente acontece na nação que tem a violência como elemento onipresente da disputa política. Em um contexto de inúmeros  movimentos aderindo às armas nas décadas de 60 e 70, foi na Nicarágua o único local em que a guerrilha triunfou depois da sangrenta guerra civil – a característica de confrontação extrema merece ser  levada em consideração na medida de sua realidade histórica.

“A crise atual tornou-se humanitária pela quantidade de mortos, feridos, sequestrados, desaparecidos, presos sem amparo legal. Isso tem levado a uma violação dos direitos humanos de forma incrível, a média é de quatro mortos por dia. A repressão governamental não cedeu nesse tempo todo utilizando não somente a polícia e os antimotins, mas também forças paramilitares irregulares. É insustentável esperar mais três anos e meio”, sustenta a socióloga nicaraguense Maria Mercedes Salgado, residente em São Paulo.

O canal ou o fundo do poço

Em contraposição à violência política, a criminalidade social figurava entre as menores da latinoamerica. A seguridade aparece como uma das marcas da gestão, que tem no controle da informação outra base de sua atuação. O governo faz valer o poder na gerência de canais de televisão e meios de comunicação, a maioria alinhados à versão oficial. A situação recebe críticas dos adversários, mas configura-se como eixo fundamental para a manutenção do projeto posicionado à esquerda no cenário diplomático da América – o diálogo permanente com Cuba e Venezuela é um dos aspectos que sinaliza a postura ideológica do estado nicaraguense.

 A decisão mais ousada, entretanto, se revela na relação desenvolvida com a China. A construção do canal da Nicarágua por uma empresa chinesa possivelmente seja o grande pano de fundo das disputas que se estabelecem no território e para além dele. A complexidade da megaoperação envolve inclusive a disputa por terras e ilhas como a de San Andres, pertencente à Colômbia e localizada nas proximidades da América Central, por onde passará a obra . As negociações sobre as rotas estão longe de consenso, situação que se repete ao discutir-se a viabilidade ambiental, apontada por especialistas como um tiro de morte para o equilíbrio natural da região.

Nesse sentido, a criação de uma nova rota no pacífico e as portas abertas ao chineses estabelece-se no mesmo nível estratégico do domínio da exploração do pré-sal brasileiro ou das grandes reservas venezuelanas de petróleo.  Não coincidentemente , foram nesses países que movimentos inicialmente aparentando defender a democracia e os direitos sociais rapidamente transformaram-se em fatores de desestabilização cooptados pela direita na busca por debilitar governos progressistas e consolidar o retorno de grupos conservadores ao comando da máquina pública.

As passeatas de maio de 2013 nas cidades brasileiras e as guarimbas venezuelas, de formas diferentes, são a fotografia desse momento. No Brasil, o golpe contra a presidente eleita Dilma Rousseff, a venda do patrimônio nacional e a prisão política de Lula foram os resultados que acompanharam o aumento da pobreza. Na Venezuela, as sanções contra o presidente Nicolas Maduro e o isolamento nos organismos internacionais não conseguiram afastar da presidência os chavistas, mas exigem dos governistas o rechaço diário de ameaças vindas do norte.

“Todos querem a renúncia de Ortega, mas ninguém está a favor de outro partido. A campanha opositora tem caráter patriótico, por isso não há um candidato a tomar o cargo de presidente. As marchas massivas pelos assassinados políticos não são reprimidas pelo grande número de cidadãos presentes, mas a polícia segue atacando povoados em que as manifestações são de grupos pequenos, que, por sua vez, buscam fechar estradas para evitar a entrada dos paramilitares e policiais nessas cidades. Enquanto isso, a economia decai e o desemprego aumenta”, opina o estudante Bryan Chiang, que presenciou o início dos protesto na Universidade Central Centroamericana.

A falta de lideranças claras e a ausência de partidos políticos aparece como outra similaridade na comparação com movimentos registrados nos países afetados por protestos. Há reais motivos para a massa trabalhadora nacional reclamar dos ônibus lotados, da falta de saneamento, da dificuldade para encontrar emprego ou da legislação defasada sobre os direitos das mulheres e de minorias. Por outro lado, não são os justos apelos das classes mais pobres a aparecerem primeiro na pauta, uma vez que muitos inclusive são beneficiados por programas governamentais.

” A Nicarágua está resistindo apesar da desestabilização que ocorre no  país. Nosso povo está cansado de violência e o correto é aguardar até o fim do mandato de Ortega e Murillo, que são os únicos aqui a fazer algo pelos mais pobres. Essa é a dura realidade”, compara Erico Molina, vendedor ambulante.

Para se ter parâmetro das dificuldades cotidianas do povo e de investimento público, um dos principais mecanismos de proteção levados a cabo pela administração é a distribuição de telhas de zinco para a população e de cestas aos campesinos que incluem dez galinhas e um porco. Da terra nica aos carpetes estadonidenses, a instituição do “Nica Act” pelos norteamericanos contribui para isolar economicamente a Nicarágua ao impedir a entrada de empréstimos internacionais e debilitar as contas públicas meses após os sandinistas ratificarem o controle governamental com a ampla vitória conquistada nas eleições municipais do último ano.

A nova estratégia reeditou no plano econômico a presença militar nas décadas de 80 e 90, quando o grupo Contra, financiados pela potência do norte, buscava a derrocada dos sandinistas do poder. Na conduta moderna, mas de mesmo objetivo, cinco milhões de dólares foram oferecidos pelo Congresso dos Estados Unidos para “promoção da democracia e apoio à sociedade civil” na Nicarágua. Regionalmente, a pressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a postura crítica adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) foram respondidas internamente com  a aprovação da lei antiterrorista, com potencial para inibir manifestações públicas.

Como de costume desde a posse de Aloysio Nunes no Ministério de Relações Internacionais, a diplomacia brasileira apoia as sanções propostas pelos americanos, de forma unânime. A esquerda do continente, ao contrário, se divide sobre a avaliação do fenômeno passado na América Central, enquanto o Foro de São Paulo reiterou em documento seu apoio aos sandinistas, o ex-presidente do Uruguai e senador Pepe Mujica observou que  “na vida há momentos em que há de dizer, me vou”, em alusão a Ortega.

Para além do cenário internacional, a disputa deve seguir nas ruas do país a partir das convocações de novos protestos pela oposição, ao mesmo tempo em que o governo acena com mais controle e demonstra força popular como nas marchas em comemoração aos 39 da Revolução Sandinista. Perdura a dúvida de por onde caminhará e navegará a Nicarágua e do quanto pode demorar para a volta dos tempos de paz no país alçado do centro da América à condição de ator central da ordem mundial.

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