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O futebol brasileiro começa a se adequar à realidade internacional

Grandes players do mercado financeiro apostam pesado em uma liga nacional e nos chamados clubes-empresa

O futebol brasileiro começa a se adequar à realidade internacional
O futebol brasileiro começa a se adequar à realidade internacional
Risco. Textor investiu 400 milhões de reais no Botafogo e tornou-se, por contrato, solidário nas dívidas do clube - Imagem: Vitor Silva/Botafogo
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A queda livre na audiência dos jogos da Seleção Brasileira, que tombou diante de equipes europeias nas últimas quatro Copas, revela que a “pátria de chuteiras” ficou no passado. Antes controlado por uma CBF rica, forte e desacostumada a dar satisfações ao público sobre seus mandos e desmandos e por uma emissora de televisão que monopolizava as transmissões e a distribuição de verbas para os clubes, o futebol brasileiro começa a se adequar à realidade internacional e vive a transição para uma nova direção. No horizonte, a incluir a criação de uma liga independente e a transformação de clubes em empresas, a expectativa é o fortalecimento de um mercado que na Europa é protagonizado por grandes players financeiros e movimenta bilhões de euros a cada ano.

Assim como na Europa, os bancos de investimento estão à frente das negociações por uma liga de clubes no Brasil. As duas propostas na mesa trazem, de um lado, a XP Investimentos em parceria com a Alvarez & Marsal, consultoria norte-americana que ganhou fama ao empregar o ex-juiz Sergio Moro, e, de outro, o BTG em parceria com a Codajás Sports Kapital. Chegaram a ser analisadas ainda propostas enviadas por KPMG, Dream Factory, Advent e CVC. O mercado da bola no Brasil é atrativo aos olhos internacionais. Há duas semanas, o influente presidente da LaLiga espanhola, Javier Tebas, a convite da XP, reuniu-se com 39 clubes das séries A e B – só o Palmeiras não foi – para vender o sonho de uma liga independente brasileira, que, segundo suas previsões, pode valer até 10 bilhões de euros (56 bilhões de reais), cinco vezes mais que o atual Campeonato Brasileiro: “É possível fazer um investimento inicial como o feito na Espanha, que foi de 2 bilhões de euros”, prometeu.

Para o economista Luiz Gonzaga ­Belluzzo, ex-presidente do Palmeiras e consultor editorial de CartaCapital, o Brasil adere tardiamente a uma tendência global: “Há muito o futebol se transformou em objeto de interesse para os fundos financeiros globais. Oligarcas da Rússia e do Oriente Médio compraram clubes na Inglaterra e na Itália”. A globalização financeira do futebol, diz, começou nos anos 1980, tendo como agente principal a universalização dos torneios e competições promovida pelas redes privadas de televisão. “A presença do JP Morgan como gestor financeiro na proposta de SuperLiga Europeia demonstra que o futebol acompanhou as transformações do capitalismo global ocorridas nos últimos 40 anos.”

Para Javier Tebas, a liga brasileira pode valer até 56 bilhões de reais

O atraso do Brasil pode ser creditado à resistência da CBF a qualquer movimento pela independência dos clubes. Isso começou a mudar na quarta-feira 23, com a eleição de Ednaldo Rodrigues para a presidência da entidade. Com mandato até 2026, Rodrigues, ao contrário de seus antecessores, afirma apoiar a criação de uma liga nacional. “A partir do momento em que trouxerem os detalhes para a CBF, a liga será permitida”, prometeu em seu discurso de posse. Ex-presidente da federação baiana, Rodrigues surgiu como aliado do todo-poderoso Ricardo Teixeira, mas rompeu com os “históricos” da CBF e virou solução para pôr fim à ­disputa judicial que se arrastava desde que o presidente anterior, Rogério Caboclo, foi afastado da entidade, em 2021, sob acusação de assédio moral e sexual.

Ex-secretário-geral da CBF e defensor de primeira hora da criação de uma liga independente, Walter Feldman considera realistas os valores apresentados aos clubes na reunião com Tebas. “Há dois anos, fizemos o primeiro estudo sobre a cadeia produtiva do futebol no Brasil e atestamos que ela correspondia a 54 bilhões de reais”, afirma. Embora essa discussão aconteça há décadas, o ex-dirigente da CBF ressalta que o futebol nacional nunca atendeu a três condicionantes que neste momento existem e permitem a sua consecução: “A primeira delas é a não oposição da CBF, que sempre teve dificuldades de encarar a criação de uma liga nos moldes do futebol europeu. A segunda é a construção de um consenso entre os clubes para a construção da liga, o que nunca foi simples”.

A terceira condição, acrescenta, é um quadro novo no mercado nacional. “Ele está sendo constituído por grupos apoiados por organizações financeiras como a XP e o BTG, mas também por fundos nacionais e internacionais, que se unem em consórcios para poder comprar direitos. Eles sabem que o futebol pode se tornar um negócio relevante na economia brasileira, como acontece lá fora, onde a participação do futebol no PIB em geral é de 1% a 2%. No Brasil, nunca ultrapassamos 0,7%”, diz Feldman.

A transmissão do futebol pela tevê nas últimas décadas foi basicamente controlada pela Globo, que de forma monocrática instituiu um sistema de repasse aos clubes baseado em sua venda de pacotes pay-per-view, o que acabou por beneficiar, sem critério esportivo, as agremiações de maior torcida, em detrimento de outras com igual importância no futebol brasileiro. Nos últimos anos, a emissora perdeu, porém, os direitos de transmissão exclusiva da Libertadores, do Brasileirão e de campeonatos regionais importantes e viu crescer a concorrência na internet, com a miríade de transmissões ao vivo hoje oferecidas em sistema de ­streaming. Além disso, desde setembro vigora a Lei do Mandante, segundo a qual os direitos de transmissão são negociados diretamente pelo clube anfitrião.

Com a liga nacional, a ideia é corrigir injustiças e privilégios. O modelo de distribuição da liga espanhola apresentado por Tebas tem 50% das verbas compartilhadas igualmente, enquanto 25% levam em conta o desempenho em campo no ano anterior e 25% seguem critérios de audiência e exposição de produtos. Para Belluzzo, o monopólio da Globo “está sendo visivelmente quebrado” pelo modelo de ­streaming. “A quebra da exclusividade é inevitável. Foi tentada no Clube dos 13, quando eu era presidente do Palmeiras, e abrimos as transmissões para outras emissoras. Só que, naquela época, não havia essa diversidade tecnológica tão grande.”

As mudanças acontecem no atacado, mas também no varejo. Amparados pela aprovação, em julho, da lei que criou a figura jurídica da Sociedade Anônima de Futebol (SAF), três clubes de massa – Botafogo, Cruzeiro e Vasco – já iniciaram seus processos de transformação a esta nova categoria. Os estágios são distintos, indo da euforia contida de alvinegros à desconfiança dos cruzeirenses, passando pela ansiedade de cruzmaltinos.

Botafogo, Cruzeiro e Vasco já iniciaram a transição para o modelo empresarial

Adquirido pelo pentacampeão Ronaldo Nazário, atleta revelado pelo clube, o Cruzeiro tem chamado atenção depois que seu Conselho Deliberativo divulgou nota na qual considera as negociações conduzidas pela XP “extremamente lesivas” ao clube e “excessivamente benéficas” ao empresário. Os conselheiros irritaram-se após Ronaldo, que comprou 90% das ações da SAF do Cruzeiro por 400 milhões de reais, ter exigido a transferência dos centros de treinamento Tocas da Raposa 1 e 2 para a nova empresa como contrapartida aos seus investimentos. Eles denunciaram ainda que Ronaldo precisou injetar somente 50 milhões no clube.

O período de 120 dias de transição à SAF termina em 18 de abril. Até lá, Cruzeiro e Ronaldo precisam aparar as arestas. Uma reunião foi marcada para segunda-feira 4 de abril e nela será preciso explicitar como o novo dono ajudará a pagar as dívidas do clube, cujos vencimentos mais imediatos somam 300 milhões de reais: “As dívidas serão pagas e não é nosso interesse vender nenhuma das Tocas”, diz o ex-jogador. Já o CEO do Cruzeiro, Paulo Assis, lembra que “sobreviver foi o principal desafio” no processo de preparação do clube para a SAF. “Os anos de 2020 e 2021 foram de caixa muito apertado, com salários atrasados e dívidas com fornecedores”, diz. O segundo desafio “foi convencer os conselheiros de uma instituição centenária de que era preciso se transformar em uma sociedade empresarial como para o time retomar seu verdadeiro lugar no futebol”.

Sem entrar no mérito do contrato firmado com Ronaldo, Assis acredita que o clube inicia um novo ciclo: “Independentemente do investidor, projetamos para o Cruzeiro que, a partir da instituição da SAF, sejam eliminados alguns aspectos políticos da gestão. No formato ­atual, assim como acontece no meio político, quando se troca o presidente muitas vezes, se interrompe um projeto que está sendo tocado no clube”. Ele vislumbra o Cruzeiro como “uma empresa mais dinâmica” e que “vai equacionar sua dívida e voltar a fazer investimentos”.

Salgado. O presidente do Vasco teve o apoio de correntes da oposição no clube – Imagem: Vasco da Gama

A esperança por dias melhores é grande também no Botafogo, que teve 90% de sua SAF comprada pelo empresário norte-americano John Textor, com intermediação da XP, em um investimento inicial de 400 milhões de reais, dos quais 150 milhões já foram repassados ao clube. Vice-presidente-geral do Botafogo, Vinicius Assumpção avalia que o clube encontrou um bom investidor: “O Textor é um cara que gosta de futebol e trouxe profissionais qualificados. A comissão técnica vai ­custar 25 milhões ao ano, e ele não os trouxe à toa. Ele também nos deu garantias de que não pretende transformar o Botafogo em um clube de exportação de jogadores”.

Mesmo se recusando a comentar o caso do Cruzeiro, Assumpção sugere que, no Botafogo, a discussão anterior à assinatura do contrato da SAF foi mais cuidadosa. “O clube está com toda a sua dívida equacionada e Textor é solidário no pagamento por contrato. Vamos pagar tudo em um prazo de seis anos. Além disso, uma série de receitas permaneceu com o clube e não precisaremos vender patrimônio para pagar dívida”, diz. O dirigente aponta a paz política no clube como fundamental para o aparente sucesso inicial da SAF alvinegra. “Nas eleições, montamos uma chapa com o presidente Durcésio Mello que tinha basicamente como bandeira a profissionalização do clube. Isso ajudou na construção de uma chapa ampla e na pacificação do Conselho Deliberativo e demais instâncias internas do clube. A SAF foi aprovada pela Assembleia-Geral com 97% dos votos.”

Rodrigues. O novo chefe da CBF não se opõe à criação de uma liga nacional – Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Paz política é o que precisará o Vasco, clube que teve todas as suas eleições, desde 2003, definidas na Justiça, para concluir o processo de compra pelo grupo norte-americano 777 Partners, que ofereceu 700 milhões de reais por 70% das ações da SAF vascaína. Foram injetados no clube 70 milhões, previamente aprovados pelo historicamente conturbado Conselho Deliberativo do clube e usado para pagar salários atrasados e dívidas mais imediatas com fornecedores. A alteração do estatuto para permitir o fechamento do negócio foi aprovada em 25 de março em um processo lento, que só deve ser concluído em julho, mas que é uma vitória do presidente Jorge Salgado por ter atraído também grupos de oposição: “A resposta tem sido positiva. Estamos conversando com todas as correntes”.

À frente das negociações, o ­vice-presidente do Vasco, Carlos Osório, avalia que o acordo com a 777 Partners avança dentro do cronograma e se diz confiante na sua aprovação: “Já temos o Memorando de Entendimentos assinado e agora estamos na fase da due diligence. O próximo passo será a assinatura do contrato vinculante e sua apreciação pelos poderes do clube”. Também sem comentar o caso do Cruzeiro, Osório garante que o Vasco não corre riscos. “Está definido que no contrato vinculante o patrimônio imobiliário do clube permanecerá como propriedade do Vasco.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os novos donos da bola”

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