Esporte

Nenhum humano é limitado. Até onde o corpo de um atleta pode chegar?

Não é só questão de metabolismo, anatomia e treino. O recordista sabe usar a inteligência

Eliud Kipchoge correu a distância de uma maratona em Viena em menos de duas horas. Foto: Alex Halada/AFP
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Há um punhado de números que estão imbuídos de significado: 3:59:4 de Roger Bannister; 9:58 de Usain Bolt; e agora 1:59:40 de Eliud Kipchoge. A extraordinária maratona de duas horas de Kipchoge em Viena, no sábado 12, é uma das maiores conquistas esportivas – registrou um tempo nunca antes alcançado e forçou novamente os limites da capacidade humana. É um momento às margens do que os cientistas acreditam ser humanamente possível.

No entanto, eventos que batem recordes como o de Kipchoge parecem cada vez mais comuns. Na semana passada, Simone Biles tornou-se a primeira ginasta a conquistar o quinto título mundial, usando dois movimentos exclusivos que nenhuma outra mulher conseguiu.

Sarah Thomas cruzou a nado o Canal da Mancha quatro vezes seguidas, 215 quilômetros em mar aberto em 54 horas. Dalilah Muhammad quebrou o recorde mundial dos 400 metros com barreiras duas vezes neste ano, e Sifan Hassan fez o mesmo nos eventos de 5 quilômetros e 1 milha. No atletismo masculino, Geoffrey Kamworor está esperando para saber se o seu tempo de 58:01 na meia maratona será ratificado, enquanto Julien Wanders estabeleceu um novo recorde de 5 quilômetros em fevereiro. E não nos esqueçamos dos nove recordes mundiais de natação masculina que Adam Peaty e outros estabeleceram este ano. Até agora. “É uma grande sensação fazer história no esporte depois de Sir Roger Bannister em 1954”, disse Kipchoge, prevendo que outros repetiriam o feito. “Eu sou o homem mais feliz do mundo por ser o primeiro a correr em menos de duas horas, e posso dizer às pessoas que nenhum humano é limitado.”

Ele está certo? Onde estão os limites da capacidade humana? E quão perto estamos de alcançá-los? Os cientistas esportivos geralmente concordam que existem limites teóricos. Michael Joyner, corredor de maratona e fisiologista, publicou um artigo em 1991 examinando os três elementos definidores de um corredor de distância: VO2 max, a quantidade máxima de oxigênio que um corpo pode absorver; economia em corrida, a taxa que o corpo utiliza de energia; e limiar de lactato, a quantidade de esforço que um corpo pode manter antes de liberar ácido láctico – a queima.

Usain Bolt ainda detém o recorde dos 100 metros rasos. Mas ficou em terceiro no Rio. Foto: Antonin Thuillier/AFP

Os cálculos de Joyner previam que o tempo mais rápido que alguém poderia correr uma maratona seria 1:57:58. E um artigo deste ano estimou que a resistência humana para os atletas mais aptos era, em última análise, limitada por seu metabolismo. Uma equipe amadora de revezamento correu uma maratona no ano passado em etapas de 200 metros e levou 1h30.

Raph Brandon, chefe de ciência do críquete na Inglaterra, distingue entre os feitos que são limitados pela anatomia humana e aqueles que exigem determinação ou habilidade. 

“Quando Usain Bolt correu 9:58 em Berlim há dez anos, se você analisar os tempos parciais, é muito difícil imaginar de onde vem a melhora”, disse Brandon, que trabalhou com o Team GB em três Jogos Olímpicos até 2014. “Os 100 metros de Usain Bolt ou a maratona em duas horas estão nessa categoria.”

Michael Phelps ganhou sete ouros em Olimpíadas. Foto: David J Phillip /AP Photo

Os eventos de ultrarresistência de vários dias, como a natação de Sarah Thomas cruzando o Canal da Mancha, são diferentes, segundo Brandon. “Eles precisam de coragem, psicologia e inteligência para ir um pouco mais longe. Essas pessoas continuarão a fazer coisas únicas porque você não está realmente levando o corpo ao seu limite anatômico, é mais uma questão do quanto você está preparado para se esgotar e se cansar.”

E há uma terceira categoria: os empreendimentos esportivos que dependem da coordenação olho-mão: os gols de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, os Grand Slams de tênis de Roger Federer e Serena Williams e as tacadas de Virat Kohli, Steve Smith ou Don Bradman, que treinou batendo uma bola de golfe contra a parede para se tornar o melhor batedor de todos os tempos a jogar críquete Test Séries. 

“Você precisa dedicar o número certo de horas”, disse Brandon. “A (bola de golfe) de Bradman é um bom exemplo. É algo que sobrecarrega sua percepção e controle de movimento, para que você possa enfrentar cada vez mais tipos de atiradores e condições de arremesso. Mas também existem limites fisiológicos para isso.”

Serena Williams, 38 anos, tem 39 títulos de Grand Slam. Foto: Thomas Samson/AFP

Em alguns esportes, longe de estabelecer novos recordes, o limite parece ter sido atingido. O arremesso mais rápido de todos os tempos no beisebol foi registrado em 169 quilômetros por hora, em 2010, e não foi superado. Na época, apenas alguns arremessadores jogavam a bola tão rápido. Hoje é comum, mas ninguém atirou mais rápido. “Não estou convencido de que haja um grande aumento nos recordes mundiais”, disse Gary Brickley, cientista esportivo da Universidade de Brighton. “O que você vê são pequenos pontos de pico que podem estar relacionados a alguma intervenção, seja equipamento, drogas ou treinamento, seja algum meio tecnológico de fazer alguém ir mais rápido.”

O equipamento tem sido um fator importante em muitos esportes. Os apanhadores da Liga Nacional de Futebol (americano) usam luvas que lhes permitem capturas improváveis com uma mão. As chuteiras foram projetadas para ajudar os jogadores a colocar exatamente a quantidade certa de efeito na bola, desde que a Adidas lançou a Predator. A equipe de ciclismo britânica dominou as Olimpíadas por causa de sua incrível nova tecnologia de roupas.

A linha entre o que é justo e injusto é opaca. A corrida de menos de duas horas de Kipchoge não será oficialmente reconhecida – ele ainda detém o registro oficial de 2:01:39 –, porque ele teve muita ajuda. O queniano correu atrás de um carro que irradiava um laser verde no chão à sua frente. Equipes de pacemakers, 41 ao todo, rodaram em forma de V para protegê-lo de ventos contrários. Ele usava sapatos especialmente projetados, e a hora e a data do evento foram escolhidas – pelo organizador Ineos, a empresa química de propriedade de Sir Jim Ratcliffe, o homem mais rico da Grã-Bretanha – somente após previsão meteorológica detalhada.

CR7, 34, passou dos 700 gols. Foto: Carlos Costa/AFP.

No entanto, Bannister também trilhou uma linha tênue entre ajuda justa e injusta. Sua primeira tentativa, em 1953, foi descartada porque seu “marcapasso”, Chris Brasher – que fundou a Maratona de Londres –, correu as duas primeiras voltas lentamente para que ele pudesse definir um ritmo acelerado na metade final da corrida. Sua corrida recorde pode ter sido da mesma maneira, de acordo com outro pacemaker de Bannister, Chris Chataway, que escreveu, em 2003, que a publicidade após o evento significava que as autoridades do atletismo “não tiveram a ousadia de questionar se Brasher e eu fomos competidores de boa-fé. É claro que não. Mas não ostentamos o fato”.

A questão da ajuda não é simplesmente um detalhe, de acordo com Ross Tucker, cientista do esporte que disse que, quando ouviu falar pela primeira vez na tentativa de Kipchoge, se perguntou se eles deveriam correr morro abaixo, seguidos por um caminhão com ventiladores gigantes para gerar um vento de popa. “Eu acho que é trucagem a ponto de irritar”, disse ele no podcast Science of Sport na semana passada. “Mas você tinha de fazer algo para contornar o limite fisiológico normal, porque tais limites, geralmente, não são rompidos em uma única tentativa.” 

Uma experiência traumática na vida pode levar o futuro atleta a buscar a superação

Talvez o limite final esteja dentro da cabeça do atleta. A psicóloga esportiva Jo Davies diz que estudos recentes mostram que os atletas podem se esforçar mais por causa de sua percepção da exaustão. “É como nós interpretamos a dor ou o desconforto – isso significa que preciso desacelerar, isso é demais, ou significa ‘isso me diz que estou no caminho certo – é para ser duro mesmo.”

Outra pesquisa publicada neste ano, que analisou atletas de elite que conquistaram várias medalhas de ouro, descobriu que eles eram diferentes em vários aspectos importantes. Muitas vezes tiveram uma experiência de vida traumática e sofreram reveses significativos de desempenho durante suas carreiras, bem como tinham traços de personalidade de crueldade, perseverança e perfeccionismo. Portanto, independentemente de esses limites terem sido alcançados, não faltarão pessoas dispostas a tentar superá-los.

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