Esporte
Liga da discórdia
A divisão das receitas do novo Brasileirão, independente da arcaica CBF, coloca os clubes ricos e pobres em pé de guerra


A criação de uma liga independente é um sonho antigo dos grandes clubes de futebol no Brasil. Tentativas de superar o atraso organizacional que condena um produto de alto valor comercial, como o Campeonato Brasileiro, a ser menos atraente e rentável do que campeonatos similares em outros países são feitas desde a formação do Clube dos 13, em 1987, na esteira da redemocratização do País. Nas últimas décadas, essas tentativas esbarraram em interesses localizados e no poder quase absoluto da emissora que controla os direitos de transmissão. A combinação do fim do atual contrato (previsto para 2024) com o esvaziamento da CBF como entidade gestora e a fragmentação dos canais de transmissão na televisão e na internet indicava que este ano a desejada liga nacional finalmente veria a luz do dia, mas uma briga em torno da divisão do futuro bolo de receitas gerou um racha que pode colocar tudo a perder.
O nó das negociações entre os clubes está na indefinição dos critérios de repartição dos direitos de transmissão dos jogos. Capitaneada pelos quatro grandes clubes paulistas e pelo Flamengo, a autodenominada Liga Brasileira de Clubes (Libra), que atualmente conta com 14 integrantes, tomou a dianteira do processo, elaborou um projeto em parceria com a empresa Codajas Sports Kapital e apresentou uma proposta de divisão de receitas segundo a qual 40% seriam rateados igualmente, 30% pelo desempenho esportivo (colocação no campeonato anterior) e 30% pelo engajamento, item medido pelo tamanho das torcidas e compra de produtos e pacotes de pay-per-view a elas associados. A proposta desagradou a diversos clubes que, liderados por Fluminense, Internacional e Athletico Paranaense, criaram o grupo dissidente Forte Futebol, com 25 integrantes. Sua proposta de divisão é idêntica à adotada atualmente pela Premier League da Inglaterra, campeonato nacional mais rentável do planeta: 50% distribuídos igualmente, 25% pelo desempenho esportivo e 25% pelo engajamento.
Os times menores reivindicam uma distribuição mais solidária, para garantir o equilíbrio da competição
A diferença pode parecer pouca, mas se traduz em dezenas de milhões de reais. Além disso, segundo os críticos, a proposta da Libra perpetuará um sistema de divisão imposto há anos por aqueles que monopolizaram as transmissões pela tevê: “Queremos que a distribuição seja mais justa e não que o Flamengo receba 70 vezes mais que o Athletico em pay-per-view”, resume Mário Petraglia, presidente do clube paranaense. Segundo a divisão sugerida pela Libra, alguns clubes podem receber até seis vezes mais que outros, o que é rechaçado pelos integrantes do Forte. “A divisão dos recursos deve seguir os exemplos de ligas bem-sucedidas no mundo. Em outros países, a diferença entre o primeiro e o último é de, no máximo, três vezes e meia. Essa redução na desigualdade fará com que tenhamos um campeonato mais valorizado, competitivo e, portanto, com ganhos significativos para que todos os clubes construam um produto mais forte”, diz Alessandro Barcellos, presidente do Internacional.
Para Walter Feldman, ex-secretário-geral da CBF, a falta de unidade entre os clubes acontece por questões financeiras, dada a diferença de torcidas e volume de negócios, mas também por diferenças políticas que precisam ser superadas. “Carece o futebol brasileiro de um pensamento ultramoderno para gerar um novo negócio, no qual todo mundo ganharia”, observa. “O salto das receitas trará ganhos adicionais mesmo àqueles clubes que faturam muito. A união em uma liga moderna, transparente, articulada e unitária que explore não somente as transmissões de jogos, mas novas possibilidades como o Big Data e os games traria ganhos consideráveis a todo mundo.”
Equidade. A discussão também precisa passar pelo nível técnico das equipes, sugere Mário Bittencourt, do Fluminense – Imagem: Mailson Santana/Fluminense F.C
Antes de ser demitido da CBF, em junho do ano passado, por divergências políticas, Feldman propôs um pacto de transição para passar o comando do futebol definitivamente às mãos dos clubes, o que o colocou em rota de colisão com os cartolas que controlam a entidade. “É necessária uma transição para um modelo de negócios que, em uma primeira etapa, assegure os ganhos que os maiores clubes têm, mas também dê perspectivas de avanço para os clubes menores”, defende. Ele cita alguns clubes, a título de exemplo: “Flamengo e Corinthians têm as maiores torcidas por questões históricas, mas isso não diminui a grandeza de clubes como Fortaleza e Bragantino. Essa transição gigantesca tem de ser entendida coletivamente, falta uma compreensão coletiva do futebol brasileiro. Ter clubes como Botafogo, Fluminense e Vasco fortes é bom também para o Flamengo, pois todos fazem parte de um ecossistema que, sendo equilibrado, funcionará bem. Isso vale para todos os estados”.
Em caso de não entendimento com o Forte Futebol, o estatuto da Libra prevê a possibilidade de o grupo negociar de forma independente seus direitos de transmissão e comercialização de produtos. Sem precedentes nos campeonatos europeus, essa divisão é desaconselhada por especialistas. “Se cada grupo vender seus jogos para uma emissora diferente, o produto certamente perderá valor”, assegura Fábio Wolff, diretor da agência de marketing esportivo Wolff Sports. A ideia também é criticada pelos clubes dissidentes: “Aposto no entendimento entre Forte e Libra. Se essa negociação não tiver sucesso, a criação de uma liga em nosso país ficaria claramente em dúvida. Os esforços são direcionados para que tenhamos um acordo”, emenda Barcellos.
“A redução na desigualdade fará com que tenhamos um campeonato mais valorizado”, avalia o presidente do Internacional
“Pressupor a existência de duas frentes de negociação de direitos comerciais antes de fazer um esforço máximo de superação é um descaminho. Seria a volta ao passado e às negociações individuais dirigidas pelos que ganham mais e que submetem aqueles que não negociaram”, diz Feldman. Isso acontecia, acrescenta o ex-deputado, na divisão estabelecida pelos contratos firmados nas últimas décadas com as emissoras de televisão: “Significaria a manutenção do modelo anterior. Só a unidade dará valoração e credibilidade ao futebol brasileiro junto ao mercado. O investidor quer fazer uma compra sólida. A sobrevivência do futebol brasileiro será necessariamente coletiva”.
Um sinal de que os clubes ainda podem superar as divergências e os interesses paroquiais foi dado em São Paulo na mais recente rodada de negociações entre representantes dos dois grupos, em 17 de julho. A Libra apresentou nova proposta, comprometendo-se a adotar o modelo de divisão sugerido pelo Forte, mas somente se as receitas ultrapassarem os 4 bilhões de reais. Se esse montante não for atingido, permanece o modelo 40-30-30. Em palestra realizada, em abril, a convite da Libra, o presidente da bilionária LaLiga espanhola, Javier Tebas, apresentou projeções que mostram que uma liga independente no Brasil, se adotar modelo semelhante ao da Espanha e funcionar em sua plena capacidade, pode valer 56 bilhões de reais.
Barcellos. “A diferença de receitas não deve ser tão elevada“ – Imagem: Sport Club Internacional/RS
Ainda não houve acordo em torno da nova proposta, mas o diálogo está fluindo: “Vejo total chance de sucesso. Os últimos encontros foram positivos e avançaram em negociações que estavam travadas. O importante neste momento é que todos tenham a capacidade de se despir de vantagens conquistadas em outros momentos. A hora é de produzir um novo campeonato à altura do que merece o público mundial”, diz o presidente do Internacional. Outra divergência que se aproximou de um acordo diz respeito à destinação de receitas aos clubes que estiverem na Segunda Divisão. Pelo plano original da Libra, 15% da receita anual seria enviada à Série B, mas o Forte Futebol quer 25%. Uma solução intermediária de 20% deve ser aprovada.
Mas arestas ainda precisam ser aparadas. Presidente do Fluminense e um dos articuladores da formação do Forte, Mário Bittencourt demanda mais discussão: “Temos de discutir tecnicamente. Todos queremos os 40 clubes juntos, mas entendemos que os critérios de divisão têm de ser diferentes dos propostos pela Libra. Com a proposta deles, o rico fica ainda mais rico”, afirma. Um dos pontos ainda em divergência diz respeito aos critérios a serem considerados no item engajamento. “A Libra predefiniu cinco critérios de engajamento que determinam 30% dos recursos, mas discordamos de pelo menos dois.” Para Feldman, os clubes correm o risco de deixar passar um momento histórico: “Os dois grupos precisam sentar para negociar com espírito positivo, pois têm nas mãos um tesouro”.
Os 14 clubes da Libra são Botafogo, Bragantino, Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Grêmio, Guarani, Ituano, Novorizontino, Palmeiras, Ponte Preta, Santos, São Paulo e Vasco. Os 25 clubes do Forte Futebol são: América-MG, Athletico-PR, Atlético-GO, Atlético-MG, Avaí, Brusque, Ceará, Chapecoense, Coritiba, CRB, Criciúma, CSA, Cuiabá, Fluminense, Fortaleza, Goiás, Internacional, Juventude, Londrina, Náutico, Operário, Sampaio Corrêa, Sport, Tombense e Vila Nova. Entre os 40 clubes das séries A e B, apenas o Bahia não se alinhou ainda a um dos grupos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Liga da discórdia “
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