Entrevistas
‘Trump retumbante’ de 2024 tentará reduzir o Estado ao mínimo e fortalecer seu controle
Diferente do ‘outsider’ de 2016, o magnata agora conhece bem a máquina pública e está determinado a promover o que ele chama de ‘revolução libertária’, aponta pesquisador


A vitória de Donald Trump em 2024 marca o retorno de um político com uma visão mais assertiva e ambiciosa para transformar o Estado americano. Diferente do ‘outsider’ de 2016, o magnata agora conhece bem a máquina pública e está determinado a cortar verbas sociais e revisar políticas ambientais, além de promover o que ele chama de “revolução libertária.”
Para Roberto Goulart Menezes, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos, este “Trump retumbante” buscará reduzir o Estado ao mínimo e fortalecer seu controle sobre o aparato governamental, desafiando a burocracia profissionalizada do que ele chama de deep state.
O retorno do magnata à Casa Branca abre também uma nova fase de tensões na América Latina, especialmente para o governo de Nicolás Maduro, que pode enfrentar um cerco renovado de Washington.
Esse cenário, destaca o pesquisador, põe o Brasil em uma posição chave, em meio ao esperado fortalecimento da direita radical latino-americana e o entusiasmo do bolsonarismo com a reviravolta política nos EUA, apostando na possibilidade de reverter a inelegibilidade de Jair Bolsonaro (PL) até 2026.
“Lula e seus assessores têm motivos para se preocupar”, diz. “Só em 2026 teremos a real dimensão do que é ter um presidente de extrema-direita nos Estados Unidos com fortes vínculos com a extrema-direita no Brasil.”
Em entrevista a CartaCapital, o professor também comenta as relações Brasil-EUA, o peso da pauta econômica e as consequências institucionais mais amplas do resultado eleitoral americano.
Confira a seguir:
CartaCapital: Que país emerge das urnas?
Roberto Goulart Menezes: A vitória de Trump era, claro, uma possibilidade, mas tudo indicava que seria apertada ou até mesmo que ele não lograria êxito. O fato é que nesses quatro anos, desde que deixou a Presidência, ele não reconheceu a eleição de Biden e seguiu trabalhando nos temas que mais mobilizou em seu governo: a imigração e a ideia de que os Estados Unidos estão ficando para trás.
A condenação na Justiça e os processos que ele enfrenta não resvalaram na popularidade dele, o que é impressionante. Isso e o fato de que mesmo os Estados Unidos tendo bons indicadores econômicos no pós-pandemia, nada pesou.
Em 2016, quando Trump venceu, era considerado um outsider – os perdedores da globalização teriam votado nele como protesto. Desta vez, isso não se aplica. Foi uma vitória retumbante, porque ele levou também o Senado e terá maioria na Câmara dos Deputados.
Durante dois anos, Trump terá tempo suficiente para aprovar muitos projetos de seu interesse. Os Estados Unidos que emergem pela vitória de Trump parecem menos polarizados que em 2020.
CC: Faz sentido atribuir ao “identitarismo” algum peso na derrota democrata, mesmo com bons números na economia?
RGM: Quando olhamos para os números da economia, sim, eles melhoraram, mas tem um ponto fundamental no caso dos Estados Unidos: o tipo de emprego criado. Tivemos em 2021, no primeiro ano de Biden, uma demissão em massa, com 4 milhões de jovens se demitindo porque acreditavam que aqueles empregos não os levariam a lugar nenhum.
Os Estados Unidos que emergem da vitória de Trump parecem menos polarizados que em 2020
Vi entrevistas com brasileiros que têm visto para viver nos Estados Unidos, e eles explicavam por que votavam em Trump: por exemplo, para evitar a chegada de novos imigrantes.
Nesta eleição, os latinos são 14,7% do eleitorado e os negros, 14%. É a primeira vez que isso ocorre. No entanto, os bons indicadores econômicos não se traduziram em maior adesão à plataforma democrata.
Um ponto que Trump mobiliza bem é a insegurança. Não apenas a insegurança com o futuro, não apenas em relação às políticas de segurança pública. A insegurança envolve até mesmo de você se sentir pertencente ao país. A extrema-direita mobiliza esse sentimento.
CC: Trump será capaz de cumprir as promessas de bonança econômica?
RGM: Trump está prometendo anos dourados, mas poderá fazer muito pouco. Nos Estados Unidos, a classe média se expandiu entre 1945 e 1975, mas desde o início dos anos 1980, com as políticas de desregulamentação do emprego e da economia como um todo, produziu-se outro mercado de trabalho, que hoje chamamos de precarizado.
CC: Quais são as principais diferenças entre o Trump de 2016 e o Trump de 2024?
RGM: Trump não é mais marinheiro de primeira viagem. É um Trump que tende a concluir projetos ou enfrentar temas que acabou deixando inconclusos no primeiro mandato.
Este Trump contundente conhece por dentro o Estado e quer aplicar o Projeto 2025, que visa cortar o orçamento da educação e eliminar verbas para áreas sociais. Quer também revisar a política ambiental e, sobretudo, redesenhar o Estado, afastando o que chama de deep state — uma burocracia em parte profissionalizada e não nomeada por ele. Pretende retomar e intensificar a pressão sobre os chineses. Esse “Trump retumbante” visa uma “revolução libertária”, reduzindo o Estado ao mínimo possível.
CC: Quais são os impactos imediatos e de médio prazo no Brasil?
RGM: Lula e seus assessores têm motivos para se preocupar com a vitória de Trump, já que o presidente expressou publicamente sua preferência pela candidata democrata.
Outro ponto é a relação entre Estados Unidos e Brasil, que completa 200 anos e, nas últimas décadas, tem sido uma parceria estratégica. A ideia é que o Brasil, ao enfrentar um conflito com os Estados Unidos em uma área específica, evite comprometer o conjunto da relação.
O Brasil tende, portanto, a reforçar uma agenda mínima com os Estados Unidos, especialmente porque a pauta ambiental de Lula já está comprometida diante dos norte-americanos. Isso afeta a COP30, onde a ausência de Trump é provável.
No G20, a situação também não é promissora: a agenda que o Brasil propôs, como a Aliança Global Contra a Fome, tende a nem ser considerada.
Além disso, a influência direta sobre a democracia brasileira é grande. No próximo ano, os Estados Unidos provavelmente ainda não terão a América Latina em seu radar mais diretamente, pois lidam com questões mais urgentes como a China, a guerra na Ucrânia, o Oriente Médio e a imigração.
Só em 2026 teremos a real dimensão do que é ter um presidente de extrema-direita nos Estados Unidos com fortes vínculos com a extrema-direita no Brasil. O cenário, portanto, é bastante difícil para a democracia brasileira e para as eleições de 2026.
Trump e Bolsonaro têm um vínculo direto, mas também há outros países, como Argentina, Chile, El Salvador e Venezuela. Há um projeto de fortalecer a direita radical na América Latina, e o Brasil é chave nesse processo.
CC: Esta deve a última eleição de Trump. Qual o futuro da política institucional nos EUA? E quais as outras consequências da vitória deste ano?
RGM: Trump conseguiu tomar conta do Partido Republicano. Vimos no ano passado como deputados trumpistas, parte deles financiada por Trump, conseguiram derrubar o líder republicano da Câmara.
Vimos nesta eleição republicanos como Dick Cheney, que foi vice de Bush, apoiando Kamala. Alguns ex-senadores e deputados também apoiaram Kamala, exatamente por causa dessa hegemonia que Trump detém no partido.
Mas o governo da região que deve estar mais preocupado com a chegada de Trump é o de Nicolás Maduro, na Venezuela, porque Trump não vai, provavelmente, dialogar nem deixá-lo com desenvoltura.
Há uma interrogação sobre como a vitória de Trump pode incidir sobre o regime venezuelano. É claro que isso pode levar a uma instabilidade política na América do Sul, e o Brasil também tem preocupações em relação a isso.
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