Entrevistas

“O Brasil anda para trás”

A pesquisa no País nunca viveu crise tão grande, diz Helena Nader, da Academia Brasileira de Ciências

Penúria. A falta de reajuste nas bolsas desanima os pesquisadores e provoca a fuga de cérebros, lamenta Nader - Imagem: Pedro Amatuzzi/Inova Unicamp e UFRN
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Primeira mulher a ocupar a presidência da Academia Brasileira de Ciências em 106 anos de história, a biomédica e professora Helena Nader assumiu o posto em meio a um dos momentos mais delicados do setor. Na visão das principais entidades representativas da comunidade científica e acadêmica, a crise das universidades e o desmonte de programas e pesquisas promovido pelo governo Bolsonaro levou a ciência brasileira a quase um ponto de não retorno, por isso um eventual novo governo deverá se dedicar desde a primeira hora à recuperação do setor. A associação divulgou um documento com propostas aos presidenciáveis, entre elas a elevação dos investimentos a 2% do PIB e o aumento do número de pesquisadores de 900 para 2 mil por milhão de habitantes. Na entrevista a seguir, a doutora Nader comenta ainda os sucessivos assaltos ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, a destinação dos recursos do pré-sal e a fuga de cérebros. A íntegra pode ser vista no canal do YouTube de CartaCapital.

Investimento
O Brasil tem uma legislação muito robusta, a começar pela Constituição, e normas infraconstitucionais perfeitas. Mas não cumpre o que escreve. Na educação ou na ciência, a gente fica à mercê do governo de plantão. Não existe ciência sem política de Estado porque elas devem ser contínuas. É diferente da construção de uma estrada, que pode ser interrompida e recomeçada. Os países avançados adotam políticas de Estado para a ciência, mas aqui, infelizmente, não. A ciência brasileira é muito jovem, tem cerca de cem anos, mas conseguiu chegar a um patamar espetacular em nível mundial. E sentimos o decréscimo desse patamar. Há 20 anos, a China investia menos que o Brasil em ciência e agora ultrapassou os Estados Unidos em número de publicações.

“Os países avançados adotam políticas de Estado” para o setor. “Aqui, ficamos à mercê do governo de plantão”

Paralisação de projetos
Se olharmos o universo de projetos que deveriam ser financiados pelo FNDCT, veremos que a situação é muito grave e atinge organizações como a Embrapii, que faz o link entre as instituições de pesquisa e o mercado, o Impa, as universidades federais, o CNPq. Todos os institutos nacionais de CT&I lançariam novo edital, mas não haverá cobertura. Estão jogando uma pá de cal que vai matar a ciência brasileira. Como vamos reverter esse quadro? Nunca estivemos em uma crise tão grande.

PEC da Compra de Votos
Foi uma tentativa de dar uma rasteira na ciência brasileira. O governo dizia que não havia “contingenciado” os recursos do FNDCT, apenas “bloqueado”. Quiseram atingir a Lei Complementar 177. É triste, mas este governo não acredita na ciência. Nós ouvimos do Ministério da Economia que o Brasil não precisa de ciência, tecnologia e inovação e que quando precisar vai comprar. Mas todos vimos o que aconteceu na pandemia. Se não fosse a nossa ciência, que conseguiu rapidamente criar máscaras, respiradores e fez acontecer a vacina, o que teria sido do País? Não sei a quem essa postura do governo serve, mas, com certeza, não é ao povo brasileiro, que precisa da ciência, assim como em qualquer país soberano.

Novos cortes
As universidades públicas correspondem a 90% da ciência brasileira. As federais estão sem recursos para chegar ao fim de 2022. No Projeto de Lei Orçamentária do ano que vem está programado mais um corte. O valor deste ano será subtraído em quase 8%. É um projeto de desmonte, sim, de ignorância e submissão a alguém de fora. O PLOA, do jeito que está sendo proposto, acaba com a universidade pública e com a ciência brasileira. Ainda por cima, querem cobrar mensalidades nas universidades públicas, como se isso fosse sustentar a universidade. Vão deixar uma dívida para o ano que vem e quem vencer a eleição vai ter um problema grave. O teto de gastos vai continuar, ao menos em um primeiro momento, e o próximo presidente vai herdar dívidas e precatórios não pagos.

Mão grande. Com o apoio do Congresso, o governo tira da ciência para gastar dinheiro em projetos eleitoreiros – Imagem: Nilson Bastian/Ag.Câmara

Eleições
A ABC faz política, mas não pode e não deve fazer política partidária. O que fazemos é denunciar, vamos lutar pela ciência. Deixamos claro e transparente aquilo que o Brasil precisa. Não vamos nos engajar na campanha de a, b ou c, mas vamos dialogar com todos. O diálogo faz parte da democracia e a democracia é fundamental para a sobrevivência de uma nação.

Diálogo
Nós temos o diagnóstico. Tudo aquilo que está escrito no livro azul da 4ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia não tem data de validade, está tudo lá. O governo que entrar terá de imediatamente pôr ações em prática, não dá para esperar. A gente até pode planejar para o futuro, mas, se esse governo que for eleito não entrar em 1º de janeiro dizendo que vai reestruturar tudo o que foi feito sobre educação e ciência, vamos sucumbir, pois o orçamento de 2023 será definido pelo atual governo. Podem e devem ser feitas novas reuniões e conferências, mas esperar por isso é atrasar a reconstrução. O governo que for eleito tem de ter muito bem esquematizado os cem primeiros dias.

Pré-sal
Lutamos muito para que o Fundo Social do Pré-Sal fosse dividido entre educação e ciência, mas perdemos. Então, ele ficou dividido em 75% para a educação e 25% para a saúde. Esse fundo nunca foi regulamentado e não sabemos se ele tem sido pago a quem de direito. Existe um projeto de lei que destina 25% do fundo para a CT&I, mas está parado. É uma solução, claro, pois todo recurso é bem-vindo. Hoje, não temos mais orçamento, é zero de investimento. Tudo vem do FNDCT. É muito pouco recurso. Se esse novo fundo puder ser ativado, vai ajudar muito. O recurso da ciência tem sido usado para trocar frotas. Infelizmente, parte do Congresso compactua com esse desmonte. A ciência brasileira não deu cheque em branco para nenhum deputado ou senador.

“A escola integral desenvolve as artes, a cultura e o raciocínio científico”

Bolsas
A ciência brasileira é, principalmente, produzida pelos estudantes de mestrado e doutorado, eles são a nossa força eletromotriz. Os vergonhosos valores das bolsas estão sem correção há nove anos, o que torna a pesquisa inviável. Em nenhum lugar do Brasil, hoje, o valor da bolsa permite o custeio de aluguel, comida e transporte. São indivíduos formados que estão se dedicando a contribuir com o País e que deveriam ser pagos no valor adequado. No exterior, a ciência está principalmente nas mãos dos chamados pós-doutorandos e aqui, no Brasil, as bolsas de pós-doutorado praticamente acabaram. Com isso, vivemos uma diminuição na demanda, pois o estudante percebeu que com aquele valor não vai conseguir sobreviver. A bolsa científica exige dedicação exclusiva. Teremos dificuldade em atingir o número de pesquisadores por milhão de habitantes que o Brasil precisa. A média do investimento dos países da OCDE é de 2,6% do PIB e, no Brasil, é menos de 1%. O Brasil está caminhando para trás.

Fuga de Cérebros
Repatriar pesquisadores seria o meu sonho de consumo. Há um monte de estudantes que eu formei que estão contribuindo com a ciência mundial, mas que poderiam estar aqui. Temos uma obrigação moral e ética de corrigir o valor e aumentar o número de bolsas e mostrar a esses jovens cientistas que estão no exterior que o Brasil mudou.

Educação de Base
A melhora da educação básica tem de começar por dar um salário digno ao professor, que é o começo de tudo. A Coreia do Sul investiu simultaneamente em CT&I e em educação, quis as melhores cabeças para serem professores e paga excelentes salários. Aqui, no Brasil, já foi importante ser professor, mas hoje em dia… Então é preciso começar por aí. Outra necessidade é fazer uma escola básica adequada para cada região, não deve existir um modelo único. Como pode um mesmo livro didático ser utilizado na Amazônia e no Sul? Temos de aproveitar a cultura local ao ensinar, o que deve ser mantido e repetido é o padrão de qualidade. Todas as escolas teriam de ter rede de internet, mas, no Brasil, há escolas que não têm banheiro ou nem mesmo janelas. Que país é este? Temos de fazer uma revolução na educação básica. Podemos colocar em prática modelos que deram certo em vários lugares. A escola integral desenvolve as artes, a cultura e o raciocínio científico. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ““O Brasil anda para trás””

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