Entrevistas

Nova presidente da UNE pede frente ampla contra Bolsonaro: ‘Caos tende a piorar’

Bruna Brelaz, da UJS, fala a CartaCapital sobre o legado da sua organização à frente da UNE e as perspectivas do movimento estudantil

Bruna Brelaz é a 2ª mulher negra a presidir a UNE, desde 1937. Foto: Yuri Salvador
Apoie Siga-nos no

A menina de 12 anos que caminhava na chuva até a sua escola em Manaus, no Amazonas, chegou à presidência da União Nacional dos Estudantes aos 26. Bruna Brelaz, nomeada no domingo 18 após o Congresso Extraordinário da UNE, foi criada em uma região pobre e periférica, com a mãe e a irmã, e passou a vida em colégios onde a prostituição e o tráfico de drogas eram presentes.

“Mamãe não tinha dinheiro para pagar o transporte, mas não deixava a gente faltar de jeito nenhum, porque precisava trabalhar e não tinha com quem nos deixar”, conta, em entrevista a CartaCapital. “Íamos com um guarda-chuva fininho e com a sacola no pé para não molhar o tênis.”

Hoje, Bruna mora em São Paulo e estuda Direito em uma faculdade particular, sem sucesso na sua tentativa de obter uma bolsa pelo ProUni. Diante da devastação de um projeto nacional de educação acessível e de qualidade, patrocinado pelo governo de Jair Bolsonaro, a nova presidente da UNE lembra conquistas de gestões presidenciais anteriores, obtidas, segundo ela, pela pressão do movimento estudantil.

Substituta do goiano e estudante de Economia Iago Montalvão, Bruna Brelaz está levando a União da Juventude Socialista, organização ligada ao PCdoB, à presidência da UNE pela 17ª vez. São mais de 30 anos no poder. Ela se filiou ao agrupamento em 2011, dois anos antes de iniciar o curso de Pedagogia na Universidade Estadual do Amazonas, em 2013. Foi aluna da instituição amazonense até 2017, quando decidiu interromper a graduação, mudar-se para Brasília e se dedicar às Relações Institucionais da UNE. Só veio a entrar no Direito em 2019, ano em que também passou a chefiar a tesouraria da entidade.

Questionada sobre críticas feitas pela oposição interna, que aponta desvantagens financeiras entre a UJS e organizações menores, ela minimiza a importância do financiamento para o sucesso da sua sigla e destaca a “condição de disputa política”. Também evita fazer autocríticas à conduta da UJS em, segundo opositores, ter aderido demais ao projeto de conciliação de classes dos governos petistas.

“Falando em nome de uma geração que não é a minha, nós tivemos papel preponderante, na verdade”, afirma. “Foi o período em que nós conseguimos aprovar os 50% para o fundo social do pré-sal e os 10% do PIB para a educação.”

Em relação a discordâncias na própria esquerda sobre a viabilidade do impeachment contra Bolsonaro, ela defende a derrubada imediata do presidente e a consolidação de uma frente da esquerda à direita.

“Essa catástrofe social chega a uma reflexão: até que ponto nós temos que aguentar?”, indaga.

Bruna Brelaz é a 2ª mulher negra a presidir a UNE. A pioneira foi Moara Saboia, do PT, que assumiu o comando de forma interina em 2016, após a eleição de Carina Vitral, da UJS, em 2015.

Conforme mostrou CartaCapital, a UNE decidiu suspender o método eleitoral neste ano, devido à pandemia, e estendeu os mandatos das forças políticas que já estavam na diretoria. A nova presidente, portanto, tem gestão prevista até julho de 2022, com previsão de prorrogação por mais um ano, questão a ser decidida em um possível congresso presencial no ano que vem. O cenário atual da UNE reflete uma unidade interna que não era vista desde os governos de Lula e Dilma Rousseff.

Confira a seguir.

Nova presidente da UNE tem mandato previsto até julho de 2022. Foto: Yuri Salvador

CartaCapital: Como mulher e nascida em uma família pobre, como foi a sua relação com a educação?

Bruna Brelaz: A minha mãe sempre acordava muito cedo para pegar filas e conseguir vaga nas melhores escolas públicas da cidade, em tempo integral. Isso era muito importante para ela, porque precisava trabalhar e não tinha com quem deixar a gente. Isso sempre foi impactante para mim. É muito difícil conseguir vagas em escolas nesse formato, porque são poucas. Minha mãe sempre foi a minha inspiração. Sempre faço questão de homenageá-la quando me perguntam sobre a minha história. Na verdade, a minha história é a história da minha mãe, que construiu a possibilidade de que eu e minha irmã pudéssemos estudar.

Eu lembro que, por um bom período, tive que ir a pé. Até tentei medir a quilometragem que eu andava da minha casa para a escola. A mamãe não tinha dinheiro para ficar pagando o transporte. Veja, as pessoas acabam abdicando desse direito, porque o transporte é caro. E, no Amazonas, chove muito num período do ano, então imagine o sofrimento de uma menina de 11, 12 anos. E a minha mãe não deixava a gente faltar de jeito nenhum, porque ela não podia faltar no trabalho, então não podíamos faltar na escola. Íamos com um guarda-chuva fininho e com a sacola no pé para não molhar o tênis.

Ao mesmo tempo em que minha mãe foi uma figura que falou para mim que a educação era importante, ela não tem noção do que é ser da UNE. Isso é engraçado, de certa forma. Quando eu contei para ela, ela disse: que legal, filha, bacana, você vai ser presidente da UNE.

No meu ensino fundamental, a minha escola ainda sofria um processo de dificuldades. Você coloca um monte de estudantes da cidade dentro da escola e não constrói um projeto educativo para que eles se desenvolvam. E você via o estrato do que era a periferia que rodeava a escola. A prostituição de meninas muito novas, o tráfico de drogas e a pobreza sempre foram muito presentes na minha vida quando eu era do ensino fundamental.

Isso muda no ensino médio, porque eu passo a estudar em uma escola do centro da cidade, mais prestigiada e com outras classes sociais. Um novo mundo.

CC: A UJS é criticada por setores da oposição por, supostamente, ter aderido demais ao projeto de conciliação dos governos petistas. Qual foi o legado da UJS na UNE? Vocês fazem alguma autocrítica em relação ao tempo em que passaram na presidência?

BB: É muito difícil quando você é de uma outra geração, porque a geração que viveu os governos Lula e Dilma é totalmente diferente da minha. Eu vivi isso no começo da minha universidade, logo depois teve o golpe da presidenta Dilma. Mas, assim, eu acredito, falando em nome de uma geração que não é a minha, que nós tivemos um papel preponderante, na verdade. Foi um papel de avanços sociais, em que nós conseguimos apresentar aos governos, com maior nível de autoridade e de respeito, as pautas da educação. Foi o período em que nós conseguimos aprovar os 50% para o fundo social do pré-sal e os 10% do PIB para a educação. Nós conseguimos fazer com que essas pessoas conseguissem ter acesso à universidade, são as pessoas mais pobres, os trabalhadores.

É óbvio que a gente quer defender o processo de expansão da universidade pública enquanto instrumento de garantia do acesso ao ensino superior gratuito. Só que nós sabemos que esse processo de construção leva um tempo em que várias gerações se perdem. Então, nós acreditamos e defendemos com muita veemência a importância do Fies e do Prouni, porque nós vimos os frutos disso e que isso pode dar certo. E é óbvio que queremos construir um debate mais aprofundado sobre esses programas, mas que eles possibilitem a entrada de mais pessoas na universidade, e não o contrário.

Essa seria a minha resposta para essas críticas. A UNE é democrática, ampla, aceita a organização de diversos setores na sua composição na disputa política. Mas eu faria essa reflexão, com as críticas que são colocadas, de que todo esse processo foi importante para pessoas como eu entrarem na universidade. Por ser fruto dessas conquistas, eu não consigo criar uma crítica relacionada a isso, porque isso envolve minha questão pessoal, de formação, de poder ter entrado na universidade por todas essas conquistas que não foram dadas de graça, foram conquistadas com muita mobilização de rua e articulação dentro do Congresso Nacional com o movimento estudantil. Mas é óbvio que a democracia da UNE permite que haja opiniões divergentes à nossa atuação nesse último período.

A União da Juventude Socialista é a principal organização da UNE. Foto: Karla Boughoff/Cuca da UNE

CC: Algumas organizações dizem que é difícil disputar a UNE de forma igualitária, por desvantagem financeira em relação à UJS e a movimentos que vêm de partidos relevantes. O que é possível fazer para assegurar que organizações divergentes possam disputar a UNE com igualdade?

BB: É muito complexo responder isso. Veja bem, o partido do qual eu faço parte, o PCdoB, é de relevância dentro da esquerda, mas economicamente um dos menores. Eu acho que é mais um processo da condição de disputa política. A UJS consegue ter maior engajamento nos fóruns e DCEs, assim como outras forças políticas que conseguiram se organizar com bastante relevância no último período e que não são de partidos com relevância financeira considerável.

Então, eu tendo a discordar dessa opinião, porque, se fosse dentro da lógica apenas financeira, existiria uma prerrogativa para partidos muito maiores conseguirem disputar com maior qualidade as eleições da UNE. O PCdoB é um partido pequeno, no comparativo a outros que também disputam a UNE, da esquerda ou da direita, que poderiam engajar recursos partidários.

CC: Em toda a história da UNE, somente duas mulheres negras foram presidentes. A falta de diversidade ainda é um problema?

BB: Precisa ser melhorado demais, porque nós somos a nova composição da universidade. A gente quer se sentir visto nos cargos de liderança do movimento estudantil e social a partir daquilo que nós conquistamos. Se, por um período, houve uma dificuldade do povo mais pobre, negros, mulheres e LGBTs em entrar na universidade, hoje nós estamos conseguindo superá-la.

É um desafio enorme do movimento estudantil em posicionar os negros e as negras, as mulheres e LGBTs. A UNE tem 84 anos e foi dirigida por 7 mulheres. Isso é algo que nós também colocamos como cobrança ao movimento estudantil para que posicione outras lideranças. E que essas lideranças se inspirem na UNE que está posicionando uma mulher, negra e nortista, para que isso se reflita em centros acadêmicos, diretórios e também para fora, na política institucional. É um desafio que perpassa o movimento estudantil, a estrutura da sociedade se posiciona dentro do movimento.

É por isso que a gente fortalece cada vez mais os encontros de negros e negras da UNE, fazemos um grande encontro de mulheres, assim como LGBTs e indígenas. Precisamos  refletir, melhorar e também fazer uma autocrítica de procurar essas representações nos cargos de lideranças da UNE, mas também fazer a crítica à política aqui fora, ao mundo do trabalho e à universidade.

Congresso da UNE realizado em 2015 tinha maior divisão; no chão, o campo da majoritária; acima, a oposição de esquerda e o campo popular. Foto: Universidade Federal do Maranhão

CC: Parte da esquerda diz que é preciso derrubar Bolsonaro imediatamente. Outra insinua que os liberais estão mais interessados no impeachment, para viabilizar uma 3ª via em 2022. O que você propõe para enfrentar Bolsonaro?

BB: O nosso país está vivendo uma crise sanitária, econômica e social sem precedentes. A nossa geração nunca viu isso acontecer na história do Brasil. Nunca presenciamos uma catástrofe social como tem acontecido no governo Bolsonaro. As pessoas estão pagando 15 reais no quilo de fragmentos de arroz, chorando na fila do supermercado porque não conseguem comprar o alimento do mês e estão voltando a morar nas ruas das capitais porque não podem pagar aluguel.

Dentro do debate educacional, o governo Bolsonaro não tem nenhum compromisso, muito pelo contrário, e nos posiciona em uma situação de subserviência a setores estrangeiros, à mercantilização do ensino e aos cortes de verbas. Toda essa catástrofe social chega a uma reflexão: até que ponto nós temos que aguentar o governo Bolsonaro?

Nesse sentido, a partir do que a conjuntura pede e do que o brasileiro e a brasileira sofrem na pele, acreditamos que é preciso tirar o Bolsonaro para ontem. Nós precisamos construir uma campanha que, nesse primeiro momento, consiga angariar os amplos setores que querem derrotar o Bolsonaro para que se possibilite o impeachment, e que nós consigamos fazer uma disputa de projeto de país e de educação, sem Bolsonaro.

Bolsonaro não representa nenhum tipo de pacto democrático. Para ele, não existe essa via da defesa da Constituição e do povo brasileiro. Por conta desses precedentes, acredito que precisamos construir uma frente ampla. Isso parte de diversos setores da esquerda, da direita e do centro. Nossa preocupação é: se Bolsonaro continuar no poder, o caos social tende a piorar.

CC: A UNE pretende fazer campanha eleitoral para algum candidato em 2022?

BB: Acho que a UNE vai ter um papel central. Os estudantes querem ter protagonismo na derrubada do presidente da República. Mas a discussão de um novo projeto passa também pela via eleitoral. Sem dúvidas, vamos estar nas eleições para falar com todos os candidatos que querem ouvir a UNE e têm disposição de receber o documento que vamos entregar a eles, sobre as perspectivas da educação e do Brasil.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo