Economia
Nova alforria
É preciso combater no plano global a uberização do trabalho, afirma Antônio Neto
Em meio ao avanço da precarização das relações trabalhistas, com destaque para a uberização em escala global, a Organização Internacional do Trabalho realiza, em Genebra, a 111ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho. Representante brasileiro no encontro, Antônio Neto, presidente da Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB), defenderá a criação de uma convenção internacional que regulamente os direitos dos trabalhadores de aplicativos. “É selvageria, escravidão moderna”, define o sindicalista na entrevista a Fabíola Mendonça.
CartaCapital: O senhor representa a voz e o voto dos trabalhadores brasileiros na Conferência Internacional do Trabalho. Qual a importância do evento no momento em que a relação entre trabalho e capital passa por grandes transformações?
Antônio Neto: Neste momento difícil, inclusive com a guerra na Ucrânia, é fundamental debater os direitos dos trabalhadores e a estabilidade do mundo. Uma das discussões que puxamos e que a OIT discute desde 2015 é a condição dos trabalhadores em plataformas digitais. O que levamos como proposta é sistematizar esse debate numa convenção internacional, nos moldes do que aconteceu com os marítimos. Estes tinham os mesmos problemas que têm hoje os trabalhadores digitais, não havia uma legislação internacional garantida em cada porto que eles atracassem. A discussão das plataformas digitais é muito parecida, pois ocorre em todos os 187 países pertencentes à OIT. Sobre a uberização da mão de obra no mundo, uma convenção internacional dá garantias mínimas e segurança tanto para quem contrata quanto para quem presta o serviço. A própria OIT condensa 18 preocupações sobre o tema e gostaríamos de transformá-las em uma convenção. É isso que levo para a conferência. Vou discutir com Guy Ryder, diretor-geral da OIT, e com as bancadas patronais e de trabalhadores de todos os países, para que possamos sensibilizá-los sobre a necessidade de instalação de uma comissão para criar a convenção internacional de trabalhadores em aplicativos.
No lugar da CLT, um novo Código Brasileiro do Trabalho, imagina – Imagem: Redes sociais
CC: Qual seria o modelo ideal?
AN: No Brasil, um projeto no Congresso trata apenas da questão previdenciária. Temos 1,5 milhão de trabalhadores em aplicativos e 53% deles estão fora da cobertura do INSS. As preocupações do projeto são a perda de renda em caso de doença, acidente ou mesmo morte. A ideia é criar dois tipos de categorias: o prestador de serviços independente e os operadores de plataformas tecnológicas de intermediação. Dois níveis para dar a contribuição ao INSS. Mas é insuficiente. Queremos regulamentar a jornada de trabalho. São 60, 70 horas semanais, sem descanso semanal remunerado, sem férias, sem nada. Queremos discutir também com as empresas, entre elas o iFood, que, por sinal, é brasileira, com funcionários que desenvolvem a plataforma e os impostos são pagos no Brasil. É fácil regular esse tipo de coisa, mas no Brasil está muito difícil, hoje, em razão do desgoverno que não quer cuidar de nada referente a direitos. É selvageria, é escravidão moderna. A OIT prega o trabalho decente, isso é um trabalho indecente. Tem outra área que são os trabalhadores de Tecnologia da Informação, cooptados pelas plataformas internacionais para trabalhar, porém aviltados em seus salários.
CC: Existe alguma articulação sindical entre os países para tratar desse tema, que é global?
AN: Conversei com o secretário-geral da Federação Sindical Mundial e teremos uma reunião em Genebra para debater melhor essas questões. Vou ter uma conversa com a Central Sindical Internacional para que, juntos, possamos convencer empresários e governos da necessidade de criação de uma comissão internacional para discutir o trabalho nessas plataformas.
CC: Como regular as novas formas de trabalho, incluído o home-office?
AN: O trabalho intermitente foi algo esdrúxulo criado pela reforma trabalhista e é contestado no STF, questionando a constitucionalidade da medida, o que dá uma insegurança jurídica muito grande para as empresas que querem contratar desse jeito. Se o STF diz que é inconstitucional, como é que ficam as empresas que contrataram sob esse regime? Temos como proposta para o próximo presidente da República a revogação daqueles itens que estão sub judice e outros pontos que prejudiquem os trabalhadores, como a homologação na própria empresa, 90% delas fraudadas ou erradas. A pejotização é uma coisa que combatemos há anos. Isso é fraude trabalhista, pois a empresa se livra dos encargos trabalhistas. Quanto ao trabalho remoto, a tendência é termos um trabalho híbrido. Mas isso deve ser regulamentado na convenção coletiva. A empresa tem de dar um adicional ao trabalhador e fornecer equipamentos.
CC: Em 2023, a CLT, ou o que restou dela, completa 80 anos e o senhor defende um novo código que regulamente e atualize os direitos dos trabalhadores. Do que se trata?
AN: Essa foi uma discussão que tivemos na Conferência Nacional da Classe Trabalhadora. Se o novo presidente revogar a reforma trabalhista, como é que ficam esses cinco anos que ela está em vigor? Há uma insegurança jurídica muito forte. Tiramos uma estratégia para ofertar aos presidenciáveis. Assim que o próximo governo tomar posse, a primeira coisa é acabar com a insegurança jurídica. Segundo: analisar como esta afeta diretamente o trabalhador, autônomo ou com vínculo. E, por último, o presidente precisa nomear uma comissão tripartite, com governo, empresários e trabalhadores. Tudo baseado nas melhores práticas internacionais. Passados os 80 anos da CTL, muita coisa foi perdida. A ideia é reorganizar o direito do trabalho e montarmos um Código Brasileiro do Trabalho e de um Código de Processo de Trabalho. Hoje, o processo de trabalho nos tribunais regionais é com base no Código de Processo Civil. Teria de ter um código próprio para dar celeridade às demandas dos trabalhadores e dos empresários, para que a gente possa resolver essas questões. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nova alforria”
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