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Nos passos do dragão

O mero superávit comercial não pode guiar a parceria do Brasil com a China, diz Robert Lawrence Kuhn

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Nos passos do dragão
Imagem: Kuhn Foundation e Nicolas Asfouri/AFP
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A partir da próxima edição, o norte-americano Robert Lawrence Kuhn une-se à equipe de colunistas de CartaCapital. Banqueiro de investimentos, estrategista com doutorado em neurociências, Kuhn tornou-se um dos principais estudiosos de China, experiência acumulada desde a sua primeira viagem ao país, em 1989, a convite da Comissão Estatal de Ciência e Tecnologia.

“Fui fisgado desde o momento em que cheguei”, recorda. “Suspeitei então que a economia, a política, a diplomacia e a cultura chinesas logo passariam a ter grande importância para o mundo.”

Bem relacionado na cúpula do Partido Comunista, agraciado com a Medalha da Amizade da Reforma da China, uma das maiores honrarias do país, o especialista terá o desafio de, quinzenalmente, oferecer aos leitores da revista uma visão mais realista e menos preconceituosa do país que caminha a passos largos e decididos para se tornar a maior economia do planeta. Dois de seus livros serão em breve lançados no Brasil pela Autonomia Literária: Como os Líderes Chineses Pensam e Como a China Superou a Pobreza. Na entrevista a seguir, Kuhn detalha os objetivos da Nova Rota da Seda, fala dos desafios chineses para superar os Estados Unidos e manda um recado aos brasileiros: é preciso inovar para superar a assimetria das relações comerciais com Pequim.

CartaCapital: O mundo vive aparentemente uma quadra de decadência do Ocidente e ascensão do Oriente. Como um norte-americano que conhece profundamente a China, qual a sua avaliação a respeito do fenômeno? Estamos às portas de uma nova ordem mundial?

Robert Lawrence Kuhn: O PIB per ­capita chinês aumentou cerca de cem vezes, ou seja, 10.000%, desde o início dos anos 1970. Em todas as áreas de importância global, especialmente na economia e no comércio, e cada vez mais na ciência e na tecnologia, a China está entre os líderes. Mas os chineses enfrentam hoje fortes ventos contrários: envelhecimento e retração demográfica, desequilíbrios industriais, dívida elevada, degradação ambiental, tensões internacionais, fuga de capitais e restrições ideológicas em uma economia de mercado. Embora a China aposte na inovação interna como prioridade nacional, é uma questão em aberto se a sociedade será capaz de nutrir e sustentar uma inovação de classe mundial. Quanto ao declínio do Ocidente, não há dúvida. Os EUA continuam, porém, a ser o lugar onde os melhores e mais brilhantes procuram estar. Como disse um sofisticado estudioso chinês, saberemos que os EUA estão em declínio quando as pessoas pararem de fazer fila para obter vistos nas embaixadas norte-americanas.

CC: Como a Nova Rota da Seda se diferencia das estratégias ocidentais de inserção internacional?

RLK:  A Iniciativa do Cinturão e Rota da China (BRI), apresentada pelo presidente Xi Jiping, está na base da política externa. A BRI aproveita a experiência inigualável do país e as vantagens competitivas na construção de infraestrutura: ferrovias, estradas, portos, aeroportos, usinas de energia, telecomunicações. Não há nada mais importante para as nações em desenvolvimento do que a infraestrutura. Deixe-me traçar a história da BRI e o desenvolvimento do nome. Em 2014, veio “o Novo Cinturão Econômico da Rota da Seda”, calcado na expansão terrestre: a China focada na Ásia Central e em busca de conexão com a Europa. O segundo, em 2015,  é a “Rota da Seda Marítima do Século XXI”, sobre a água: uma aproximação do Sudeste Asiático, Oriente Médio, África e Europa. Essas duas Rotas da Seda foram então combinadas na estratégia de desenvolvimento econômico “One Belt, One Road”, que então mudou seu estranho nome em inglês para “Belt and ­Road Initiative” (o original chinês de “One Belt, One Road” soa fluente e é mantido).

“Ter um pensamento inovador é necessário para as empresas e o governo brasileiros”

CC: Qual é o objetivo de Pequim?

RLK: A BRI não é caridade. A China diz buscar um ganha-ganha. O país beneficia-se do acesso a matérias-primas, negócios para suas grandes empresas de construção e, mais importante, do desenvolvimento de novos mercados para seus produtos. O sucesso da China é bom porque garante a continuidade da BRI. Recentemente, Xi Jiping apresentou a Iniciativa de Desenvolvimento Global da China, baseada na plataforma de infraestrutura da BRI e que aborda as desigualdades globais, com foco no alívio da pobreza, segurança alimentar, resposta e vacinas à Covid-19, financiamento do desenvolvimento, mudanças climáticas, desenvolvimento, industrialização, conectividade e economia digital. A iniciativa de desenvolvimento global e a BRI se combinam para implementar a visão de Xi Jiping de construir uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade.

CC: Como  a China vê suas relações com a América Latina? Qual o papel do Brasil?

RLK: A América Latina, em geral, e o Brasil, em particular, são altamente importantes para a estratégia econômica de longo prazo dos chineses. Há mais de uma década acompanho o BRICS de perto, do ponto de vista da China, e posso testemunhar o quanto Pequim o leva a sério. Não se pode ignorar a resposta competitiva chinesa ao buscar aumentar seus negócios no hemisfério ocidental, domínio dos EUA na velha ordem, assim como Washington persegue uma estratégia no Indo-Pacífico com aliados e outros Estados independentes da China. Conclusão: os chineses aumentarão seu compromisso com o Brasil e cabe aos brasileiros moldá-los de acordo com seus interesses de longo prazo.

CC: Uma marca da Iniciativa do Cinturão e Rota tem sido a oferta de investimentos em infraestrutura, desenvolvimento comercial, industrial e tecnológico em troca muitas vezes de ­commodities e bens de baixo valor agregado. A partir das parcerias na Nova ­Rota da Seda, como o senhor avalia os potenciais de cooperação entre Brasil e China? A China pode ser uma aliada para a reconstrução econômica brasileira?

RLK: Certamente. As parcerias entre o Brasil e a China são naturais, há um enorme potencial de negócios. Começa com a infraestrutura, que a China constrói e financia e que o Brasil precisa e pode ser digna de crédito. Reconhece o comércio substancial e crescente. A relação deve levar em conta, porém, a assimetria entre as duas nações. Quase todas as exportações do Brasil para a China são matérias-primas e commodities: soja, minério de ferro e petróleo bruto respondem sozinhos por cerca de três quartos, segundo os dados de 2020. Adicione a carne bovina congelada e o porcentual passa de 80%. Por outro lado, as exportações da China para o Brasil são quase inteiramente de bens manufaturados, com sofisticação crescente na cadeia de valor: telefones, equipamentos de transmissão, semicondutores, circuitos integrados. Embora o Brasil tenha uma balança comercial favorável, a assimetria, obviamente, não ajudará o Brasil a desenvolver tecnologias e produtos do século XXI. A boa notícia é que os líderes da China estão cientes desse problema estrutural e trabalharão para resolvê-lo. Não será fácil. Ter um pensamento inovador é necessário para as empresas e o governo brasileiros. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nos passos do dragão”

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