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Luto infinito

Não há como superar centenas de milhares de mortes evitáveis para a Covid-19 sem justiça e reparação, alerta Christian Dunker

Os familiares das vítimas sequer puderam se despedir adequadamente - Imagem: Alexandre Schneider/Getty Images/AFP
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Com 2,7% da população mundial, o Brasil concentrou mais de 10% do total de mortes por Covid-19 em todo o planeta. O negacionismo de Jair Bolsonaro, o atraso na entrega de vacinas e a negligência estatal em prover tratamento adequado aos pacientes – faltou até oxigênio nos hospitais de Manaus – provocaram centenas de milhares de mortes evitáveis. As famílias enlutadas nem sequer tiveram a oportunidade de se despedir das vítimas da pandemia adequadamente. Pior, o País comporta-se como se nada tivesse acontecido, uma negação do luto que só prolonga o sofrimento coletivo.

A análise é de Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP e pós-doutor em Psicologia Clínica pela Manchester Metropolitan University, que acaba de concluir um livro sobre o tema. O psicanalista explica que o luto envolve entender o significado da perda recente em relação às anteriores, um processo que se completa na relação com outros enlutados. Quando se trata de um trauma coletivo e existe a percepção de que a morte poderia ser evitada, só é possível encontrar paz após algum tipo de reparação.

“Há lutos que a gente não quer ver o fim”, afirma. “Não quero concluir o meu luto, por exemplo, por Marielle Franco. Então entro em um luto infinito. Enquanto algo não acontecer, como a revelação de quem mandou matá-la, meu luto não termina.” Na entrevista a seguir, Dunker fala sobre a superação dos traumas da pandemia e as perspectivas para as novas gerações.

O psicanalista acaba de concluir um livro sobre o tema – Imagem: TEDx Guarulhos

CartaCapital: O Brasil soma quase 700 mil mortos por Covid-19. Além das famílias enlutadas, estima-se que 130 mil crianças e adolescentes ficaram órfãos na pandemia. Qual é o impacto disso para a sociedade e a nossa subjetividade?

Christian Dunker: Acabei de finalizar um livro sobre o tema, intitulado Lutos Finitos e Lutos Infinitos. É uma tentativa de juntar o luto como experiência individual, de perda de uma pessoa querida, com esse processo no qual o meu luto se encadeia no luto do outro, e do outro no do seguinte, e assim indefinidamente. Clinicamente, isso é um fato relevante. Quando a gente se enluta, precisa contar com o luto do outro. Mas, quando não é possível ver o corpo nem acompanhar direito o enterro, quando a pessoa ficou entubada e morreu sem contato com a família, essa experiência fica um pouco contida. Para muitos, o processo do luto ficou suspenso, porque essa parte não estava disponível. A todos que passam por esse momento recomendo o livro O Lugar, de Annie Ernaux, que relata o luto da autora em relação ao pai. O processo envolve uma espécie de pesquisa sobre quem era a pessoa que se foi. E como essa memória acontece? As coisas lembram, as cartas lembram, os lugares lembram, as palavras lembram, e o outro também me faz lembrar, por ângulos e afetos diferentes, mas complementares. Com a pandemia, no entanto, as pessoas estão mais distantes, o que retarda a elaboração do luto.

CC: Quando o luto de fato termina?

CD: Para a psiquiatria, esse processo leva 15 dias. Caso contrário, tome antidepressivo. Na verdade, cada um tem o seu tempo. Alguns levam meses, outros demoram anos, pode ser que a dor nunca passe. Mas, respondendo à pergunta, feita anteriormente por Freud, o luto termina quando ele se articula simbolicamente com os lutos anteriores da sua vida. Quando perdi minha mãe, comecei a lembrar do meu pai, que eu havia perdido 15 anos antes. Ao lembrar do meu pai, veio à memória a imagem de minha avó… A questão é como você guarda a perda recente em relação às anteriores, em uma espécie de cadeia. No momento em que você consegue lidar com essas memórias com pouco peso, sem que ela atravanque a sua alma de tal maneira que você mal consegue se mexer, isso representa o término do luto, que o Freud chamava de “momento de liberdade”, por nos fazer sentir mais leves. É como se tivesse passado a dor e ficado apenas a saudade. No entanto, se a gente pensa o luto como processo social, ele só vai terminar quando você conseguir, dentro de sua comunidade, fazer esse encadeamento coletivo.

“A PERGUNTA DE FUNDO DE UM JULGAMENTO DOS CRIMES DA PANDEMIA É: ‘QUE NOVO BRASIL A GENTE QUER?’”, AFIRMA

CC: Como assim?

CD: Há lutos que a gente não quer ver o fim. Não quero concluir o meu luto, por exemplo, por Marielle Franco. Então entro em um luto infinito. Enquanto algo não acontecer, como a revelação de quem mandou matá-la, meu luto não termina. A grande questão, em relação à pandemia, é quem vai pagar a conta de centenas de milhares de mortes evitáveis. Recomendo a todos o filme 1985, Argentina. Obrigatório. Temos muito o que aprender com os hermanos. Eles julgaram os crimes da ditadura, e não se trata de revanchismo. Julgamento é reparação. Na prática, a pergunta de fundo de um julgamento dos crimes da pandemia é: “Que novo Brasil a gente quer?”

CC: Por falar no Brasil que desejamos, o que será dessa geração que concluiu o Ensino Médio e entrou na faculdade em meio à pandemia? Eles tiveram prejuízos em sua formação e começam a retomar o convívio social agora, mas em um país arruinado, com poucas perspectivas de futuro, não?

CD: Vamos ver o filme Nunca me ­Sonharam, de Cacau Rodhen. Mesmo antes da pandemia, essa geração já se via sem rumo. O documentário ouve estudantes de escolas públicas do Brasil inteiro e expõe a falta de perspectivas que você mencionou. Por mais que tenhamos mais negros nas universidades públicas – que estão em ruínas, mas estão abertas –, não é uma coincidência que o processo de desmonte do ensino superior público tenha ocorrido exatamente quando as universidades se tornaram mais inclusivas. Sim, o sistema de cotas está funcionando, mas ainda não demos condições para esses jovens sonharem. Dentro da máquina neoliberal, a única perspectiva depois da faculdade é encontrar um emprego e ser massacrado dentro da empresa. Os jovens dizem “eu não quero isso”, e com razão. Eles olham para os adultos e enxergam pessoas queixosas, depressivas, medicalizadas. Por que desejariam se transformar em um sujeito desse tipo? •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Luto infinito”

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