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Futuro incerto

‘As elites latino-americanos têm encontrado diferentes formas de restringir ou proibir candidaturas de que não gostam’

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Em 2018, os eleitores foram impedidos de escolher Lula
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Ricardo Romero é cientista político, analista internacional, mantém uma coluna no jornal Tiempo Argentino e publicou recentemente o livro El Brasil de Bolsonaro, no qual analisa a conjuntura que levou o País a eleger o ex-capitão logo após a década dourada dos progressistas no poder no continente latino-americano. Segundo o especialista, estudioso da política regional, a crise das democracias não é um fenômeno isolado ou recente. “As elites latino-americanos têm encontrado diferentes formas de restringir ou proibir candidaturas de que não gostam.” Um dos fatores que permitem o surgimento de candidatos de fora da política tradicional, diz, tem a ver justamente com a popularização de um discurso vazio de combate à corrupção. “O desgaste é intencional, justamente o grande problema que tiveram no Brasil é que a mesma erosão do PT, acusado de corrupção, impactou todas as forças políticas. Isso gera o cenário perfeito para o surgimento de outsiders, de novas expressões políticas da ultradireita.”

RICARDO ROMERO:É cientista político, analista internacional, mantém uma coluna no jornal Tiempo Argentino e publicou o livro El Brasil de Bolsonaro.

CartaCapital: O senhor acompanhou todo o processo eleitoral no Brasil em 2018, desde o aparecimento de Bolsonaro como um candidato a não ser levado a sério até o momento em que ele arrebatou o cargo mais importante do País. Como avalia esse momento? O que o senhor acha que aconteceu com o povo brasileiro ao passar de Lula para Bolsonaro?
Ricardo Romero: No meu livro, chamado O Brasil de Bolsonaro, analiso o panorama político do seu país desde o golpe contra Dilma Rousseff. De como esse golpe foi construído e se transformou no ponto intermediário que culminou na anulação da candidatura do ex-presidente Lula. Esse é o primeiro fato que deve ser assinalado. Não é que a sociedade brasileira esteja se voltando totalmente para a direita, porque também não é que exista um veto específico para um candidato de esquerda. O Lula foi o favorito nas eleições de 2018, mas ele não pôde concorrer. Nesse quadro, é necessário compreender que a candidatura de Bolsonaro foi construída a partir disso. Outro ponto importante é que nesse processo que culminou no golpe de Estado, todo o establishment político deixou de constituir um candidato, tanto no espectro tradicional da política de direita brasileira quanto na social-democracia representada pelo PSDB ou MDB. Tanto os tucanos quanto os emedebistas estavam muito deslegitimados, muito desgastados. Na verdade, grande parte da corrupção da qual os governos petistas foram acusados era fruto de gestões do MDB. Então, as mesmas causas daquele sangramento político motivaram o golpe, mas não puderam gerar uma mudança política. O cenário é ocupado, então, por um candidato que começou a aglomerar o espectro político contrário a uma volta de Lula, um establishment que fez todo o necessário para gerar a anulação da sua candidatura. Hoje sabemos que foi tudo armado pelo então juiz Sergio Moro e isso impediu a eleição do Lula, e que, em certa medida, também houve um segundo turno, no qual o PT perdeu por muito pouco com Fernando Haddad. Bolsonaro venceu, mas não conseguiu consolidar esse espectro antipetista.

CC: Em termos regionais, o Brasil sempre foi uma economia gigante, mas, nos últimos anos, assistimos a um aumento da inflação, da pobreza e da desvalorização do real. Como avalia o momento econômico do País?
RR: O Brasil enfrenta uma crise de crescimento desde o governo Dilma Rousseff, o que impediu a sua permanência no cargo, gerando o apoio político necessário para efetivar o golpe. Depois disso, as “reformas” de Michel Temer ou aquelas instituídas por Bolsonaro favoreciam a retomada do crescimento. O País pode até crescer, mas não necessariamente será uma expansão benéfica para todos, pois se finca em um processo baseado no neoliberalismo. Não é o mesmo que crescer pouco em um modelo neodesenvolvimentista de um governo popular. Bolsonaro serviu apenas para impedir a volta de um governo inclusivo, sem gerar um padrão de crescimento econômico, nem mesmo quando tentou sacrificar os mecanismos de controle de circulação que a pandemia exigia, para dar lugar à normalização da atividade econômica. Isso enfraquece ainda mais as chances de Bolsonaro se reeleger no próximo ano. Mais ainda, não há uma candidatura potável para o establishment que lhe permitiria pensar em um sucessor. Nenhuma candidatura mede mais de 10 pontos. Mesmo a de Moro, que conta com bastante simpatia dos donos do dinheiro, não parece viável. Até agora, Lula continua a ser o franco favorito.

“GRANDE PARTE DA CORRUPÇÃO DA QUAL OS GOVERNOS PETISTAS FORAM ACUSADOS ERA FRUTO DE GESTÕES DO MDB”

CC: Como observador internacional, o que o senhor espera das eleições presidenciais no Brasil?
RR: Resta muito pouco tempo até as eleições para que haja uma recuperação econômica que permita a instalação ou a possibilidade de uma continuidade de Bolsonaro. A consolidação do bolsonarismo, acredito, somente se daria nesse caso. Mas, se o poder político tradicional não conseguir gerar uma candidatura alternativa, isso poderia levar a um apoio condicionado no caso de um segundo turno. Ou poderíamos ver o nascimento de um pós-bolsonarismo, que poderia se manifestar de duas maneiras. Primeiro, o mais provável proeminente é o retorno de Lula, que é o favorito. O establishment seria obrigado então a aceitar um novo governo do PT ou buscar qualquer ação autoritária para impedir sua eleição. A verdade é que as elites latino-americanas têm encontrado diferentes formas de restringir ou proibir candidaturas. Não obstante, poderia haver a possibilidade de que um candidato saia com fôlego da chamada “terceira via”, talvez chegando ao segundo turno contra Lula. Nomes como os de Sergio Moro, Ciro Gomes e João Doria estão aí, mas a realidade é que hoje nenhum tem uma possibilidade factível de se apresentar como o pós-bolsonarismo, ou um bolsonarismo sem Bolsonaro. Hoje, caso o processo eleitoral seja transparente e legítimo, Lula seria o presidente da nação. Mas os donos do poder não estão nada satisfeitos com essa possibilidade. Portanto…

Está na hora de reformular o Conselho de Segurança da ONU

CC: Recentemente, Lula esteve na Europa e ouviu que falta à América Latina um líder que sirva de referência, como era o caso dele. Alguém com quem a União Europeia possa dialogar sobre desenvolvimento e questões ambientais. O senhor também acha que essa vaga está em aberto e que o Brasil poderia realmente preenchê-la de novo?
RR: Sim, digamos que dentro do cenário internacional é preciso começar a reconhecer as identidades. Ainda existe um tema muito velho, algo do pós-Guerra: existem apenas cinco cadeiras no comitê permanente de segurança das Nações Unidas, um espaço que, a meu ver, deveria ser ampliado. O Brasil é um país continental, com certo peso econômico regional e com as capacidades necessárias para ocupar um lugar de representação latino-americana. Nesse sentido, inclusive, poderia ocorrer uma renovação desse conselho, porque existem países que ocupam cadeiras, apesar de não terem o peso econômico do Brasil, como é o caso da França. Por isso, existe a necessidade de repensar a geopolítica e mesmo a União Europeia em si, suas possibilidades de trabalho em conjunto, visando o desenvolvimento tanto da América Latina quanto de outros continentes com os quais busca trabalhar em parceria.

“O BRASIL É UM PAÍS CONTINENTAL, COM CERTO PESO ECONÔMICO REGIONAL E COM AS CAPACIDADES NECESSÁRIAS PARA OCUPAR UM LUGAR DE REPRESENTAÇÃO LATINO-AMERICANA”

CC: Assistimos à ascensão do populismo de direita na América Latina, legitimado nas urnas, como aconteceu no Chile e na Argentina em eleições recentes. O senhor acha que a figura de Bolsonaro e esse panorama no Brasil atual incentivaram o surgimento dessas candidaturas na região?
RR: Sim, claro. Além disso, muitas destas candidaturas são logística e estrategicamente apoiadas por serviços de inteligência, nos quais existem organizações não governamentais que apoiam, que doam fundos. Essas candidaturas recebem também incentivos de publicidade, possibilidades de inserção, espaço nos meios de comunicação que as fortalecem. Não se trata apenas de uma eleição popular, por trás disso há todo um processo de manipulação por parte das corporações midiáticas que permitem uma certa instalação de figuras que saem do esquema desgastado das forças políticas tradicionais. Nesse sentido, o grande problema que tiveram no Brasil é que a mesma erosão do PT, acusado de corrupção, afetou as demais forças políticas. Isso gera o cenário perfeito para o surgimento de outsiders, de novas expressões políticas da ultradireita, com um entorno cada vez mais polarizado em uma tensão, em que ou você escolhe essas possibilidades da nova direita ou terá de ver como se recompõem as propostas democráticas participativas no continente.

CC: O senhor acredita que o risco de golpe no Brasil continua alto?
RR: Há uma diferença entre o fascismo clássico do século passado e o neofascismo. O fascismo no século passado usou os mecanismos republicanos institucionais para varrer a democracia. Ou seja, assim que chegaram ao comando, varreram o sistema republicano e sua divisão de poderes. O interessante agora é que eles mantêm esse peso político institucional da república, copiando-o, principalmente no que se refere a questões parlamentares e judiciais. Nesse sentido, também há muita vulnerabilidade do Supremo Tribunal Federal do Brasil. O STF impugnou a candidatura de Lula, descumprindo, inclusive, uma recomendação da ONU. Nesse mesmo sentido, o Supremo validou a eliminação do princípio de inocência, permitindo quase uma reversão do ônus da prova, deixando o caminho livre para a prisão do ex-presidente. Digamos que existia muita vulnerabilidade não só do sistema institucional brasileiro, mas em vários outros países latino-americanos. Acho, porém, que existe um abismo em relação à democracia e esses países caminham por uma borda muito perigosa.

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CC: O que o senhor espera do futuro do Brasil?
RR: O futuro está em construção, é muito incerto, não quero cair no pessimismo da razão. Acredito e procuro que os povos venham nesse otimismo da militância, como disse Antônio Gramsci: “O pessimismo nos dá a inteligência e o otimismo nos dá a força de vontade”. Acredito, no entanto, que os projetos mais democráticos sempre reaparecem como uma Fênix e faz parte da história ter de reconstruí-los. Nesse sentido, os latino-americanos demonstraram ter capacidade para enfrentar situações adversas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: LUCAS SILVA/AGIF/AFP E REDES SOCIAIS – JAVIER TORRES/AFP, DIEGO REDEL/FECAM, GOVSP E ESKINDER DEBEBE/ONU

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