Entrevistas

‘Cidadão de bem’ da primeira fase do bolsonarismo deu lugar a ‘patriota’ disposto a morrer

A antropóloga Isabela Kalil analisa as motivações por trás do atentado ao STF e alerta para a escalada do discurso de ódio e das teorias conspiratórias no País

‘Cidadão de bem’ da primeira fase do bolsonarismo deu lugar a ‘patriota’ disposto a morrer
‘Cidadão de bem’ da primeira fase do bolsonarismo deu lugar a ‘patriota’ disposto a morrer
Francisco Wanderley Luiz, morto na explosão realizada na praça dos Três Poderes. Foto: Reprodução/Redes Sociais
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Francisco Wanderley, conhecido nas urnas como Tiü França, poderia ser apenas mais um dos milhares de candidatos derrotados nas eleições municipais brasileiras. Entrará para a História, no entanto, como protagonista de um episódio que escancara os perigos da radicalização política à brasileira.

Na quarta-feira 13, Wanderley morreu ao detonar explosivos em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Vestido com um terno improvisado, que evocava o estilo histriônico do personagem Coringa, morreu com explosivos nas mãos, encerrando uma vida marcada pela adesão progressiva a discursos extremistas e teorias conspiratórias.

Para a antropóloga Isabela Kalil, professora da Fundação Escola de Sociologia Paulista, o caso reflete um processo mais amplo de radicalização política no Brasil, com raízes que remontam a um contexto anterior aos ataques do 8 de Janeiro. “Estamos vivendo um processo de extremismo que começou antes de 2022 e não se encerra nesse episódio contra o STF”, afirma.

Nos últimos anos, Kalil liderou pesquisas de campo sobre os perfis que compõem a base bolsonarista. Segundo ela, a figura do ‘cidadão de bem’, típica da primeira fase do bolsonarismo, agora divide espaço com uma versão mais extremista: o ‘patriota’, capaz de matar ou morrer por um ideal.

“Entre 2016 e 2019, nós não ouvíamos pessoas dizendo ‘posso morrer pelo Bolsonaro’”, destaca. No caso de Wanderley, esse senso de pertencimento culminou em uma decisão extrema, reforçando a perigosa lógica de que, para alguns, o radicalismo violento é a única forma de cumprir uma “missão”.

Confira, a seguir, os destaques da entrevista:

CartaCapital: Francisco Wanderley, que explodiu as bombas e em seguida se matou em frente ao STF, tinha uma trajetória política. Como você avalia esse episódio?

Isabela Kalil: Embora o evento seja específico, ele faz parte de um processo mais amplo, que começa antes do 8 de janeiro de 2023 – e não se encerra ali. Estamos vivendo no Brasil um período de extremismo e radicalização, acompanhado por episódios que reforçam essa dinâmica. Nos últimos anos, houve um avanço no recrutamento para comunidades extremistas, com pautas que vão desde ataques ao STF até hostilidades contra o feminismo e instituições democráticas.

CC: O que leva alguém, com uma vida aparentemente pacata no interior, a atos extremos como esse? Como se dá o recrutamento dessas pessoas?

IK: Tudo começa com a exposição a conteúdos na internet. Ninguém assiste a um vídeo e, imediatamente, parte para um ataque ao STF. É um processo gradual. Esses conteúdos criam um senso de comunidade e pertencimento, que reforça ideias extremistas. Para alguns, esse envolvimento pode chegar ao limite, como foi o caso do atentado contra o STF.

CC: Culminando até em suicídio…

IK: Quando a pessoa acredita que sua vida tem um único propósito – e ela o cumpre –, não sobra mais nada. Isso explica por que, em grupos radicais, ataques violentos seguidos de suicídio são comuns. O indivíduo sente que sua missão foi cumprida e que não há nada mais a ser feito.

CC: O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, disse que esse não pode ser tratado como um episódio isolado.

IK: Ele está certo. Esse tipo de ato é o resultado de anos de discursos políticos legitimando a ideia de que o Brasil estaria melhor sem a Suprema Corte. Além disso, o ex-presidente Bolsonaro mobilizou teorias conspiratórias, o que agrava a situação. O discurso de ódio já é muito perigoso por si só, mas, combinado com teorias conspiratórias, torna-se uma mistura explosiva que mobiliza emoções profundas, como medo e indignação. As conspirações dão sustentação para coisas muito fantasiosas, mas também extremas; por exemplo, de que determinados atores políticos ‘não são humanos’, de que será instaurada uma ditadura… É duplamente perigoso.

CC: Essas teorias não costumam circular na superfície e sim numa espécie de ‘submundo’ virtual. Não é algo tão fácil de ser combatido, não? 

IK: A maioria delas até podem ser facilmente encontradas nos fóruns na internet, mas quem compartilha usa dessa estrutura narrativa do segredo. E quem recebe se sente especial. ‘Só eu sei a verdade’. A pessoa que decide atacar uma instituição, um prédio, se sente mobilizada por uma verdade oculta. E aí não há quase nada que você possa fazer para tentar dissuadir aquela pessoa. Porque basicamente é a perspectiva de que ela descobriu a verdade. O senso de propósito dela é provar para o mundo que ela estava certa, ou tentar sanar aquela conspiração.

CC: Estamos vendo nascer uma nova direita radical no Brasil?

IK: Mesmo dentro do bolsonarismo, há uma cisão. Nossas pesquisas mostram o seguinte: Bolsonaro se elegeu com base na ideia do ‘cidadão de bem’, que já era mais violenta que a versão clássica da direita. A partir de 2020, contudo, emerge uma versão ainda mais extremista: o ‘patriota’. Entre 2016 e 2019, não ouvíamos pessoas dizendo nas pesquisas: ‘posso morrer pelo Bolsonaro’. As declarações eram mais variadas – mas essa disposição de morrer, com de fato ocorreu, não aparecia. Essa mudança de discurso, somada à pandemia, nos levou a uma nova fase. Foi ali que começou a preparação para o que culminaria no 8 de Janeiro.

CC: O discurso de Bolsonaro mudou nas últimas semanas, aparentemente por interesse em uma anistia. O que isso representa?

IK: Por trás do discurso da anistia há algo preocupante: a tentativa de reabilitar Bolsonaro. O bolsonarismo tem mobilizado a retórica do período pós-ditadura, até os mesmos termos: preso político, “anistia”. É como se eles dissessem assim: ‘já fizemos antes’. Mesmo que esse processo não resulte em anistia para Bolsonaro – até porque ele não foi condenado pelo 8 de Janeiro, mas por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação –  a possibilidade de perdão contribui para torná-lo mais aceitável. Ou seja, se o Estado brasileiro concede perdão aos envolvidos, isso pode levar a um processo social mais amplo de normalização – algo semelhante ao que ocorreu com Trump. Quem diria que Trump conseguiria se reabilitar dessa forma e voltar à Presidência? Parecia improvável, mas aconteceu.

CC: O atentado contra o STF, aliás, ocorre poucas semanas após Trump ter sido reeleito. Isso dá um novo fôlego à direita radical?

IK: Um fôlego forte, sem dúvida. A extrema-direita tem que lidar com o dilema de estar dentro ou fora das regras políticas. Exemplos como a invasão do Capitólio ou o 8 de Janeiro representam ações “fora”. Já participar de eleições está “dentro”. No fundo, o que a vitória de Trump simboliza? Que é possível reabilitar-se politicamente mesmo após ultrapassar os limites do aceitável. Isso fortalece não apenas Bolsonaro, mas também outras figuras da direita radical no Brasil que possam considerar cruzar esses mesmos limites.

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