Economia

As projeções de André Roncaglia para a economia brasileira em 2024

A CartaCapital, o economista faz um balanço de 2023, analisa a reforma tributária e projeta o cenário para o ano que vem

O economista André Roncaglia. Foto: Divulgação
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O ‘mercado’ projeta que o Produto Interno Bruto brasileiro crescerá cerca de 3% em 2023, o primeiro ano do novo governo Lula (PT). Estima, também, que a inflação fechará em aproximadamente 4,5%, abaixo do teto da meta. E, apesar de previsões de desaceleração em 2024, pode haver surpresas positivas. A avaliação é de André Roncaglia, doutor em Economia do Desenvolvimento pela FEA-USP e professor da Unifesp, em entrevista a CartaCapital.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), acumula vitórias relevantes no Congresso Nacional e nas disputas internas, como uma ampla reforma tributária e da manutenção da meta de zerar o déficit fiscal em 2024, contrariando a pressão da ala desenvolvimentista do governo federal.

Há, contudo, grandes desafios no horizonte, que vão da disputa política na sociedade às amarras impostas pelo Legislativo ao Orçamento, passando por um cenário externo de notável volatilidade. Na avaliação de André Roncaglia, contudo, “há outras forças que podem vir a amenizar o resultado final”.

“Não cravo um número, mas certamente uma possibilidade grande de haver surpresas em termos de crescimento, em termos de indicadores econômicos no ano que vem, também”, afirma. “Como disse o presidente Lula, dá muito trabalho ter tanta sorte. Vamos ver se conseguimos reeditar [em 2024] a sorte deste ano.”

Confira a seguir.

CartaCapital: Lula encerra 2023 com aprovação de 64% entre os que ganham até 2 salários mínimos e de 41% entre os que recebem mais de 5 salários. Há razão econômica para explicar a diferença?

André Roncaglia: É um primeiro ano de arrumar a casa, com muitas batalhas em diferentes fronts. O governo termina este primeiro ano com uma mistura de grandes expectativas para 2024, ao mesmo tempo em que teve muitas vitórias acumuladas em 2023, principalmente do ponto de vista institucional.

O governo vem dando sinais de ter grande sensibilidade social, reativando vários programas que haviam sido simplesmente eliminados, extintos ou colocados na geladeira pelo governo Bolsonaro. Também vem tentando fazer um esforço para limpar o balanço das famílias e resgatar a atividade econômica.

Não podemos deixar de salientar a vitória que é passar uma reforma tributária ampla, unificando 30 tributos sobre consumo em um momento em que a democracia prevalece – só fizemos uma reforma assim em 1964, durante o regime militar.

Não podemos nos esquecer de que se trata de um governo de reconstrução, não dá para ter absolutamente o inverso daquilo que veio antes. É uma conquista muito relevante. A capacidade que o governo teve de convencer o mercado financeiro de que uma gestão de esquerda não seria o fim do mundo é algo a se comemorar.

https://youtu.be/v0AQCYiQqYc

CC: O ‘mercado’ projeta uma inflação de cerca de 4,5% e um crescimento no PIB de 3%. Como avaliar esses números?

AR: A inflação das pessoas de mais baixa renda diminuiu basicamente porque diminuiu a inflação de alimentos. Tivemos um crescimento de quase 2 milhões de empregos formais, um aumento na força de trabalho, estamos na máxima histórica na quantidade de pessoas trabalhando no Brasil.

Temos desafios do ponto de vista da qualidade dos empregos, do ponto de vista da subocupação [pessoas que gostariam de trabalhar mais, mas não estão conseguindo]. Agora, quando olhamos os números gerais da economia, o Brasil está vivendo um momento quase paradoxal: a economia acelerou com relação ao ano passado, a inflação vem caindo e os juros também estão caindo, junto com o desemprego.

Parte do PT vê na figura de Haddad alguém que não está jogando no campo de Lula. Eu acho que é o contrário

É algo que na literatura internacional se convencionou chamar de desinflação benigna. Ou seja, você não precisa parar a economia e gerar uma recessão para conseguir controlar os preços. Estamos vendo uma queda da inflação com efeitos progressivos, porque afeta mais positivamente as pessoas de baixa renda, com queda do desemprego, que ajuda a elevar a renda da economia e com várias políticas de governo que dão substância a essa melhoria no padrão de vida, como a restauração da Farmácia Popular, a garantia e a manutenção dos valores do Bolsa Família, além do Desenrola, que vai ajudar a aliviar um pouco a trajetória de dívida das famílias.

Temos programas de governo sendo restaurados para garantir, por exemplo, bolsas de estudos, o funcionamento de postos de saúde, garantir que estados e municípios invistam na infraestrutura e na mobilidade urbanas. Todos esses elementos vêm configurar um cenário muito benigno, mas que coloca um desafio, algo que Joe Biden vem enfrentando nos Estados Unidos: impedir que haja uma dissociação entre os indicadores econômicos muito positivos e a percepção de bem-estar da população.

CC: Nos EUA, mesmo com bons indicadores, a população mostra aversão ao presidente.

AR: acho que o governo Lula vai enfrentar esse desafio, principalmente se no ano que vem não conseguirmos garantir o mesmo crescimento econômico ou um crescimento econômico pelo menos acima de 2%. Então, fechamos este ano com crescimento de provavelmente 3%, uma inflação que deve fechar dentro da meta, uma balança comercial com recorde de quase 100 bilhões de dólares de saldo positivo, desemprego nas mínimas desde 2015 e vários indicadores de rendimento das famílias melhorando. Agora, o desafio é as pessoas reconhecerem isso no governo e conseguirem dar o apoio necessário para manter este trabalho.

CC: Nesta linha, qual é o saldo do primeiro ano de Fernando Haddad na Fazenda?

AR: Haddad conseguiu surpreender o mercado positivamente. Eu converso bastante com as pessoas que trabalham na Faria Lima, e a visão dos gestores é de uma grata surpresa. Mas acho que essa surpresa é porque eles previam um cenário de penhasco fiscal, em que o governo sairia gastando de maneira descontrolada e a própria regra fiscal que o governo apresentaria ficaria muito abaixo das expectativas. E não foi o que aconteceu.

Haddad, de certa maneira, consegue fazer uma negociação bastante intensa com esse front de aversão ao governo. Isso, evidentemente, vem com concessões. É isso o que ressente parte do Partido dos Trabalhadores, que vê na figura de Haddad, equivocadamente, alguém que não está jogando no campo do presidente Lula. Eu acho que é o contrário.

O cenário externo que está se desenhando é muito positivo. É bem possível que seja essa a nossa salvação no ano que vem

CC: Por que?

AR: Haddad foi muito habilidoso em garantir e conquistar espaço em um terreno que era muito difícil. Conseguiu fazer a aprovação do marco fiscal e faz isso com uma trajetória de déficit bastante rigorosa. Fazer o processo de redução do déficit já em 2024 para zero foi uma promessa que, na minha visão, era muito dura, muito difícil de ser cumprida, mas o Haddad entendeu a lógica do mercado financeiro.

CC: E o que quer o mercado financeiro?

AR: O mercado financeiro quer compromisso. Você não precisa necessariamente cumprir, tanto que o mercado financeiro não cobrou de Roberto Campos Neto [presidente do Banco Central] que atingisse a meta de inflação nos últimos dois anos. Então, a questão é como no discurso o governo se mantém fazendo esforço, tentando controlar o déficit.

CC: Qual foi a grande conquista de Haddad em 2023?

AR: Foi a reforma tributária. Não nos esqueçamos de que os ministros que vieram antes dele tentaram fazer reforma tributária e não conseguiram, e isso só ocorre quando realmente investe energia, coloca realmente muita gente para trabalhar para que isso seja aprovado, porque a disputa é muito grande, ainda mais uma reforma que tem tantas dimensões.

Nesse sentido, acho que Haddad consegue angariar credibilidade aqui dentro e lá fora, consegue garantir um cenário de estabilidade para o governo, que tem agora o desafio de ser mantido. Então, a meta fiscal muito dura vai colocar um desafio de ordem política muito grande.

A mera simplificação reduz tremendamente o custo de operação das empresas. Segundo, a redistribuição dos impostos, que hoje estão muito concentrados em estados mais ricos ou em municípios muito ricos. Um terço de todo o ISS arrecado no Brasil está na mão de dois municípios, São Paulo e Rio de Janeiro. A reforma tributária vai redistribuir esses recursos. Os efeitos tendem a fazer um redesenho do federalismo nacional e fiscal.

Congresso aprova reforma tributária. Foto: Lula Marques / Agência Brasil

CC: Há, ainda, a necessidade de mudar a tributação da renda…

AR: Esse é só o primeiro passo, porque a próxima etapa é justamente avançar na reforma dos tributos sobre a renda e o patrimônio, e é aqui que reside grande parte da nossa regressividade. Não conseguimos tributar adequadamente a renda, tanto de corporações quanto de pessoas físicas, e é onde a desigualdade tributária e a injustiça tributária se concentram. Este, sim, na minha visão, será o grande desafio do governo Lula do ponto de vista das instituições de longo prazo.

E tem uma terceira fase, que é a reforma da tributação sobre a folha de pagamentos. Vimos recentemente a disputa no caso da desoneração da folha. Precisamos rever a maneira de financiar a Previdência Social, porque o trabalho não é mais como ele existia, o trabalho hoje não gera mais a arrecadação necessária para financiar a Previdência Social, as relações mudaram.

CC: Há mais de 50 bilhões de reais em emendas que o Congresso aprovou e o governo deverá pagar em 2024. Esse modelo é sustentável?

AR: Tem de ser. Se não for, teremos um problema grave do ponto de vista da governabilidade. Primeiro, o Congresso avança sobre o Orçamento, o que venho chamando de parlamentarismo orçamentário. Quando isso acontece, a fronteira entre os Poderes fica esfumaçada, e eu acho que é exatamente isso o que o Congresso está buscando: não apenas a autonomia financeira, mas de certa maneira garantir um feudo fiscal.

A aprovação do Orçamento não trouxe apenas um aumento das emendas. As emendas impositivas e obrigatórias subiram de 30 bilhões para 37 bilhões, mas o problema é que elas são acompanhadas da autonomia da programação financeira – ou seja, o Congresso também estabeleceu que esses gastos devem obrigatoriamente ocorrer até julho do ano que vem, exatamente por conta das eleições municipais no segundo semestre.

Lira e Pacheco revezam-se nos papéis de policial bom e policial mau – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

O Parlamento conseguiu uma vitória substancial do ponto de vista quantitativo, que é o volume de recursos, mas também do ponto de vista operacional, e isso é muito perigoso para qualquer governo, porque ele perde graus de liberdade imensos na hora de fazer a gestão das finanças.

O Congresso, essencialmente, empurra o contingenciamento e o ajuste fiscal para as áreas que são de interesse do do governo e reserva para ele [Congresso] a garantia de 37 bilhões que vão ser gastos para assegurar uma competitividade eleitoral para seus partidos.

Esse cronograma tende a colocar uma série de dificuldades para o governo no ano que vem, inclusive ameaças de avanços em pedidos de impeachment, em acusações e denúncias de crime fiscal, o que a gente já viu acontecer durante o governo Dilma e que levou ao golpe de 2016.

CC: Encerramos com o cenário internacional: guerras em Gaza e na Ucrânia, ultradireita no poder na Argentina e eleição nos EUA. Quais são os desafios para o Brasil nesse campo?

AR: O cenário externo para o ano que vem está se desenhando muito positivo. É bem possível que seja essa a nossa salvação no ano que vem, com uma retomada da economia chinesa, acompanhada pela economia norte-americana e um cenário positivo para as nossas exportações, a despeito da estagnação europeia, já com contornos bem fortes.

Se o banco central americano de fato começar a reduzir a taxa de juros em março, como prevê, todos esses indicadores que a gente viu, de PIB, taxa de câmbio, Bolsa de Valores, tendem a romper máximas históricas e atingir novos picos.

Tudo isso tende a cooperar com o crescimento econômico, particularmente do ponto de vista social. Já se fala em uma taxa de câmbio para o ano que vem fechando entre 4,40 e 4,50, o que seria uma apreciação cambial de vulto, e a apreciação cambial no curto prazo é muito expansionista, porque aumenta o poder de compra dos salários e gera um barateamento do custo de importações. Então, ela é muito positiva no curto prazo para reativar a economia.

O Congresso conseguiu uma vitória substancial em volume de recursos, mas também do ponto de vista operacional, e isso é muito perigoso

Para o Brasil, a minha impressão é que estamos muito bem posicionados para nos beneficiarmos desses movimentos. Os grandes sintomas desse benefício para a gente vão aparecer no que eu espero ser uma queda mais acelerada da taxa de juros. Até há poucos meses, o mercado estava prevendo uma taxa Selic no final do ano em torno de 9,75%. Já estão falando em 9%, ou seja, muito possivelmente aceleraremos a queda da Selic no ano que vem. A taxa de câmbio também tende a aliviar muitas tensões internas, ainda que os seus efeitos de longo prazo sejam bastante questionáveis.

Vou deixar cravado, não um número, mas certamente uma possibilidade grande de haver surpresas em termos de crescimento, em termos de indicadores econômicos no ano que vem, também. Como disse o presidente Lula, dá muito trabalho ter tanta sorte. Então, vamos ver se ele consegue, se nós conseguimos, como país, reeditar a sorte que aconteceu neste ano.

Não será igual, acho que vai desacelerar, por conta da discussão da questão fiscal, que tende a gerar alguma contração no gasto público – isso eu acho absolutamente incontornável. Mas há outras forças que podem vir a amenizar o resultado final e gerar uma surpresa positiva.

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