Entrevistas

‘Vivemos o momento mais tenebroso da Polícia Federal’

O delegado Alexandre Saraiva, afastado por investigar Salles, denuncia interferência política na PF

Saraiva estava há dez anos na Superintendência da PF no Amazonas. Foi removido para Volta Redonda, no interior do Rio. (FOTO: DPF/AM )
Apoie Siga-nos no

“Vivemos o momento mais tenebroso da Polícia Federal.” O diagnóstico é do delegado Alexandre Saraiva, afastado da superintendência da PF do Amazonas em abril de 2021, após dez anos de serviço. O motivo? Ele solicitou ao Supremo Tribunal Federal a abertura de um inquérito contra o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, por obstrução de investigação, advocacia administrativa e organização criminosa.

Em entrevista a ­CartaCapital, ele conta os bastidores das operações Handroanthus e Akuanduba e mostra como o governo Bolsonaro tem atuado para inviabilizar a fiscalização e as investigações de crimes ambientais. Doutor em Ciências Ambientais com 18 anos de experiência na PF, Saraiva agora atua em Volta Redonda, no interior do Rio de Janeiro, e acompanha a distância a atuação do novo ministro, Joaquim Leite. “Ele é um fantoche.”

CartaCapital: Como surgiu a investigação que causou a queda de Salles?

Alexandre Saraiva: Agentes da PF do Amazonas detectaram uma movimentação atípica de embarcações nos rios Madeira e Mamuru. Em 15 de novembro de 2020, chegou uma equipe da aviação da PF para transportar policiais para o sul do estado, em apoio à segurança nas eleições. Pedi ao comandante para levar mais um policial e, na volta, sobrevoar os rios e tentar confirmar as informações de satélites. As fotos eram incontestáveis. A equipe alcançou uma das balsas três dias depois, houve flagrante – era uma balsa com madeira retirada do Pará, mas teve de passar pelo Amazonas. O comandante foi preso e começamos a puxar o fio. Foi um efeito dominó gigante. Em janeiro, instaurei inquérito para apurar aquilo. Eram mais de 100 mil metros cúbicos de madeira apreendida, batendo todos os recordes.

Salles se reuniu com os investigados em um hotel de Santarém e passou a fazer uma defesa descarada da organização criminosa

CC: Em que ponto Salles soube da investigação e passou a interferir?

AS: Fizemos uma reunião com o Conselho da Amazônia. O vice-presidente Hamilton Mourão estava presente, o diretor da PF na época também. Ficou combinado que o Exército faria a retirada da madeira da área. O volume era tão grande que só os militares tinham capacidade operacional e logística para retirar de lá. Com o passar do tempo, essa vontade institucional do Exército de participar da operação foi decaindo, não consegui entender o motivo. Havia forças agindo politicamente para desacreditar a operação e os militares anteciparam a saída da operação. Em uma reunião com Comando Militar do Norte, me disseram que levaria 20 anos para tirar a madeira, mas os criminosos fazem isso em dois meses. Salles foi lá, olhou duas toras de um universo de 70 mil, e deu entrevista atacando a operação. Isso nos surpreendeu, pois ele havia sido informado do conteúdo dos laudos.

Uma semana depois, Salles voltou lá, se reuniu com uma parte dos investigados no Hotel Açay, em Santarém, e passou a fazer a defesa descarada dessa organização criminosa. Dessa reunião ele pegou caixas com documentos, alardeou que comprovava a legalidade da madeira e que em uma semana estaria resolvido. Os documentos chegaram por barco e tinha muita coisa repetida, isso é prática para ludibriar a polícia. Foi aí que descobrimos que a madeira veio de um esquema de terras griladas.

CC: Quais empresários estavam por trás?

AS: São criminosos roubando o patrimônio público. O preço da madeira aumentou muito após o colapso na produção do Sudeste Asiático. Eles “adquiriram” a terra e tinham contrato de quitação de serviços com várias exportadoras. Essas empresas ficam com 70% do lucro, deixam 30% pra eles. E toda madeira vai para o exterior. Estamos falando de madeira que leva de 200 a 1,4 mil anos para crescer. Não é um recurso tão renovável assim.

O ex-ministro é investigado por obstrução de investigação e advocacia administrativa. (FOTO: Redes sociais)

CC: Como se deu o seu afastamento da chefia da PF no Amazonas?

AS: Foram duas coisas. Primeiro, estava mudando o diretor-geral da PF. Quando isso ocorre, é natural que alguns superintendentes mudem. Mas não é comum da forma como ocorreu, tirando um dos mais antigos de uma superintendência e rebaixando de função. No caso, eu era o mais antigo, estava há dez anos no posto. Antes, existia uma política velada na PF: mesmo alguém pedindo para sair de um posto, se tivesse qualquer tentativa de interferência política por fora, essa pessoa não era trocada, para sinalizar que não havia possibilidade de intervenção. Parece que isso mudou, e minha substituição foi inoportuna. Logo depois, o delegado que estava conduzindo a Operação Akuanduba (sobre a exportação de madeira ilegal) também foi trocado.

CC: O presidente do Ibama, Eduardo Bim, chegou a ser afastado. Ele também é investigado, mas voltou para o instituto este mês.

AS: O Ibama é o órgão mais importante para o meio ambiente do País. Tradicionalmente, as operações da PF eram em parceria com o Ibama, mas nesses dois anos a atuação conjunta foi minguando, chegando ao ponto de orientarem servidores do Ibama a apontar erros em laudos da PF. Subverteram a lógica do Ibama. Eduardo Bim foi alvo das duas operações. Ele chegou a reclamar com o diretor-geral da PF que estávamos fiscalizando no Porto de Manaus. O diretor ainda me ligou de forma ríspida, a pressão política não é de hoje.

Podemos dar ao Brasil qualquer outro nome, menos República. É um erro conceitual. Aqui, temos uma oligarquia de criminosos

CC: Como o senhor avalia a gestão de Joaquim Leite?

AS: Para mim, ele está ali como fantoche. Não mudou nada. A maior prova disso é que cortaram, desde março, o nosso acesso ao mais importante sistema de todos, o Sistema de Documentos de Origem Florestal (Sisdof). É a mesma coisa que você deixar a PM sem acesso ao sistema do Detran para checar se um carro é roubado ou não. Dificultou demais a apreensão e a investigação contra a extração de madeira. Foi uma medida brutal.

CC: E como os agentes estão trabalhando?

AS: Estão usando informações antigas, não atualizadas, para ao menos ter uma base. Precisa pedir, caso a caso, para o Ibama passar alguma informação. Perde-se um tempo valioso, porque a madeira ilegal está em trânsito. Vale também lembrar que a madeira ilegal é “esquentada”, porque a autoridade não pega, uma vez que são toras passando debaixo do nariz de todo mundo. A maior parte sai do Porto de Paranaguá.

CC: O MPF aponta um grave aumento de crimes como grilagem e extração ilegal de madeira, principalmente nos estados amazônicos, com destaque para o Pará.

AS: Tudo isso é viabilizado porque os Documentos de Origem Florestal (DOFs) são adulterados. Interceptamos, inclusive, diversas conversas de criminosos, assim: “Madeira eu consigo, madeira a gente tem, o que precisamos é de DOF”. E olha que coisa curiosa: nem o Pará nem o Mato Grosso, estados que concentram 50% do desmatamento em todo o País, estão registrados no Sisdof, devido a uma liminar judicial. No Pará, nem sequer existe analista ambiental de carreira. É uma terra sem lei.

O novo ministro, Joaquim Leite, “está ali como fantoche”, avalia o delegado Saraiva. (FOTO: MMA)

CC: O Pará seria um resumo da ausência do Estado no País?

AS: A maior ilusão que nós, brasileiros, temos é que somos uma República. Podemos dar ao Brasil qualquer outro nome, menos República. É um erro conceitual. Aqui, temos uma oligarquia de criminosos.

CC: Hoje, existe uma interferência política maior na PF?

AS: Vou falar de forma geral, mas hoje vivemos o momento mais tenebroso na Polícia Federal. E olha que estou há 18 anos na corporação. Além das trocas de delegados (Saraiva e Franco ­Perazoni), o chefe da divisão de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico do Meio Ambiente, Rubens Lopes, que atuava na Akuanduba, também caiu. Para ter uma noção, o diretor-geral (Paulo Maiurino) mandou tirá-lo. O coordenador não topou, daí eles mudaram a divisão inteira, toda a coordenação, até entrar um novo chefe que topou tirá-lo. Mandaram ele para uma missão em Curitiba e até hoje não publicaram sua remoção. Impuseram, inclusive, um sigilo de cem anos sobre os motivos que os levaram a não promover o delegado Perazoni da Akuanduba.

CC: A propósito, como o senhor avalia o envolvimento de policiais e militares nos atos de 7 de Setembro?

AS: A democracia é um valor inegociável. Quem tem a lei como parâmetro não participa de nenhum tipo de ação que insinue qualquer ameaça à democracia. Não contem comigo para isso.

Publicado na edição nº 1174 de CartaCapital, em 9 de setembro de 2021.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar