Entrevistas

Adilson Moreira: Culto branco à meritocracia esconde o poder dos círculos de relacionamento

Autor de uma obra-chave sobre letramento racial, o jurista fala sobre necropolítica, barreiras à presença negra no STF e a dimensão racial da crise climática no Brasil

Adilson Moreira: Culto branco à meritocracia esconde o poder dos círculos de relacionamento
Adilson Moreira: Culto branco à meritocracia esconde o poder dos círculos de relacionamento
Adilson Moreira: O Prêmio Jabuti Moreira carrega mais do que reconhecimento literário - Divulgação/Editora Contracorrente/Instagram
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Vencedor do Prêmio Jabuti 2025 na categoria Educação, o jurista Adilson Moreira diz considerar que o reconhecimento ao livro Letramento racial: uma proposta de reconstrução da democracia brasileira (Ed. Contracorrente, 2024) confirma algo ainda difícil de admitir no Brasil: não há caminho democrático possível enquanto o País não reconhecer o racismo como fenômeno estruturante das suas instituições. [refinar]

A Operação Contenção, a mais mortífera da história do Rio de Janeiro, ocorrida há duas semanas, é um exemplo extremo dessa lógica, denominada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe de “necropolítica“, a política da morte. “Isso mostra como pessoas que vivem em áreas periféricas estão em uma situação de estado de exceção permanente”, pontua o professor de Direito da FGV-SP nesta entrevista a CartaCapital.

Doutor em Direito pela UFMG e pela Universidade de Harvard (EUA), Adilson Moreira é a principal referência em Direito Antidiscriminatório e autor de vários livros, entre os quais destacam-se Racismo Recreativo (2019) e Pensando Como Um Negro: Ensaio de Hermenêutica Jurídica – este último finalista do Prêmio Jabuti de 2020.

Ele conversou com CartaCapital antes de participar do “Ajeum da Consciência Negra”, evento realizado pelo Abassá Pilão de Oxaguian, em Aracaju. Horas antes da conferência, o jurista esteve na Universidade Federal de Sergipe para uma palestra sobre letramento racial e cidadania.

Confira os destaques. 

CartaCapital: Seu livro acaba de vencer o Prêmio Jabuti. O que significa receber o maior reconhecimento da literatura brasileira no atual contexto do Brasil? 

Adilson Moreira: Estou muito honrado e extremamente feliz com esse prêmio. Primeiro, porque ele representa o resultado de um esforço coletivo, dos meus pais, dos meus familiares, que me ajudaram a chegar até aqui. Ele também é fruto da minha ancestralidade, de todas as pessoas negras que, ao longo do tempo, lutaram pelo avanço da justiça racial neste País e abriram condições para que eu pudesse caminhar e atingir meus objetivos.

Eu sou um intelectual, um escritor, e me sinto muito feliz por receber esse prêmio por um livro elaborado sem concessões, escrito a partir da perspectiva teórica de pessoas negras, da intelectualidade negra. Quero acreditar que essa obra é uma contribuição importante para o avanço da justiça racial e, de maneira geral, para o avanço da justiça social, porque a ideia de letramento racial está amplamente relacionada com a ideia de democracia. O racismo é um sintoma de que as instituições democráticas não estão funcionando adequadamente. Por isso, é fundamental que reflitamos sobre esse problema tão grave na sociedade brasileira.

CC: O senhor defende o letramento como ferramenta de reconstrução democrática. É possível alfabetizar racialmente um País cuja elite se beneficia deste analfabetismo?

AM: Olha, é possível criar aliados. É possível contribuir para que as pessoas, por meio da educação, construam desde a infância uma cultura democrática, que aprendam, desde cedo, a refletir sobre questões e conceitos políticos e jurídicos básicos, como igualdade, direitos, liberdade, dignidade, democracia e participação. À medida que avançamos nesse processo contínuo de conscientização sobre o que é relevante para o fortalecimento da democracia, conseguiremos promover o letramento das gerações futuras e também das gerações atuais.

Obviamente, muitas pessoas brancas, especialmente aquelas que são membros da elite e que se beneficiam, e sempre se beneficiaram, do racismo, vão negá-lo, entre outras reações. Mas a questão do letramento racial também diz respeito às ausências, à história única, ao fato de que grande parte dessas pessoas nunca foi exposta a outros tipos de racionalidade. O letramento racial, na minha proposta, é mais um repertório de argumentos para a mobilização política da população negra e também das pessoas, brancas ou negras, que estão comprometidas com a democracia.

CC: A consagração do seu livro no Jabuti ocorre no momento em que se discute quem ocupará a vaga em aberto no STF. Os ‘supremáveis’ cotados são todos homens brancos. Por que ainda existe essa contradição?

AM: Uma coisa que eu sempre argumento, não apenas nesse livro, mas de maneira geral, é que progressistas são aquelas pessoas que compartilham poder, oportunidades e recursos. O Supremo é um órgão colegiado cuja composição atual é formada por pessoas brancas, heterossexuais, de classe alta, que estudaram nas mesmas universidades, vêm das mesmas classes sociais e foram orientadas pelos mesmos professores. Então, essas pessoas tendem a pensar da mesma forma.

Elas podem ter divergências políticas, mas o lugar que ocupam determina, em grande parte, a forma como percebem o mundo. Portanto, ter uma mulher negra, ou um homem negro progressista, dentro do Supremo Tribunal Federal é uma oportunidade para que outras formas de racionalidade, outras epistemes [formas de conhecimento], estejam presentes nesse espaço.

No discurso de muitas pessoas de esquerda, ou que se dizem progressistas, há uma preocupação com representatividade, mas também um compromisso com a manutenção do poder. E essa fala do presidente Lula, de que quer indicar uma pessoa na qual confia, não deve ser o parâmetro para escolher alguém que ocupará a mais alta Corte.

O que se precisa, de fato, é de maior representatividade — especialmente representatividade negra — e de pessoas que tragam outras perspectivas e percepções para dentro dessa instituição.

CC: Por que essa dificuldade de acessar esses espaços de poder persiste?

AM: Isso está relacionado com os imaginários e as percepções sobre quem pode e deve estar em determinados lugares, e com a ideia de que a presença de pessoas brancas implica que elas chegaram ali por meritocracia. Existe um culto à meritocracia, tanto entre pessoas de esquerda quanto de direita, quando, na verdade, sabemos que grande parte delas alcança posições de poder em função dos círculos de relacionamento que frequentam.

Uma forma pela qual o letramento racial pode contribuir é deixando muito claro como processos discriminatórios operam para impedir que certos grupos tenham acesso a oportunidades, e como operam para garantir que outros grupos sempre permaneçam em situação privilegiada. E um desses privilégios é justamente a ideia de que, se você é uma pessoa branca, heterossexual, de classe alta — especialmente um homem branco, heterossexual, de classe alta — você teria uma legitimidade ‘natural’ para ocupar esses espaços.

A presença de uma pessoa negra, seja um homem ou uma mulher, nesses espaços é, por si só, uma forma de letramento para pessoas brancas e para a sociedade brasileira, ao mostrar que nós, pessoas negras, podemos estar em diversos lugares e ocupar posições de poder e prestígio — no espaço acadêmico, político, intelectual — ganhando prêmios, exercendo funções políticas, econômicas, entre outras. Quanto maior for a presença de pessoas negras, maior também será esse processo de letramento.

‘Letramento racial’ foi escrito durante a estada de Adilson Moreira como professor visitante na Faculdade de Educação da Universidade de Stanford – Divulgação/Editora Contracorrente/Instagram

CC: Acabamos de assistir à operação policial mais letal da história, no Rio de Janeiro, com 121 mortos. O senhor costuma dizer que “o racismo é uma política de morte disfarçada de segurança”. Como viu esse caso?

AM: Isso é um exemplo de uma forma de discriminação institucional. É um exemplo daquilo que a Achille Mbembe chama de política de morte — o ‘deixar morrer’ e o ‘deixar viver’. Isso mostra como pessoas que vivem em áreas periféricas estão em uma situação de estado de exceção permanente. E também exemplifica como pessoas brancas se beneficiam do racismo.

Por que o governador não mandou a polícia “matar os bandidos” que fazem lavagem de dinheiro na Avenida Paulista [em referência à Operação Carbono Oculto, que desmantelou os negócios do PCC na Faria Lima]? Ele mandou a polícia controlar pessoas negras e periféricas. Faz isso e, logo depois, afirma que o resultado foi muito bem-sucedido, porque esses políticos brancos estão cientes do desprezo racial e social generalizado presente na sociedade brasileira.

Dentro de uma sociedade na qual o racismo tem esse aspecto estrutural, é possível mobilizar forças policiais para promover chacinas e, ao mesmo tempo, atribuir às vítimas a responsabilidade pela própria morte, como se fossem naturalmente criminosas, utilizando supostas características raciais para legitimar a violência estatal.

CC: Pesquisas mostram que moradores das favelas onde a chacina ocorreu apoiaram a operação… Essas pessoas são, ao mesmo tempo, vítimas dessa ‘política’, mas também das facções e das milícias. Onde o letramento se insere nisso?

AM: Novamente, o letramento racial é um letramento para a democracia. Ele implica uma educação para a democracia, o que significa informar à sociedade como o Estado e as instituições estatais devem operar. E elas devem operar com base no princípio da legalidade: todas as ações estatais precisam ser justificadas e legitimadas pela lei.

Assim, uma operação policial em uma área periférica precisa ser resultado de um processo de investigação, de inteligência. Deve estar baseada e acompanhada pelo Ministério Público e ser fruto de um planejamento que justifique a ação estatal. A maioria das pessoas não compreende isso, e muitas das que vivem em áreas periféricas são influenciadas por discursos de direita.

O avanço de igrejas neopentecostais nessas comunidades é mais um elemento da ideia de que o crime seria resultado da ‘natureza perversa’ das pessoas, e não algo socialmente produzido — como se essas pessoas não enfrentassem falta de acesso a boa educação, a condições de trabalho dignas, e não fossem sistematicamente discriminadas. Ao mesmo tempo, esses políticos brancos utilizam o dinheiro público e o poder que têm para beneficiar os bairros brancos.

Além de não terem esse conhecimento, essas populações também são influenciadas por essa visão moralizante do crime que o trata como algo inerente ao indivíduo e não resultado de uma conjuntura social. E, ao mesmo tempo, estão expostas à violência cotidiana. Há, portanto, uma confluência problemática de fatores.

Por isso, creio que o letramento racial é relevante na medida em que permite que as pessoas tenham um nível maior de informação sobre como o Estado deve operar e sobre quais são, de fato, as causas da criminalidade.

CC: Como o letramento racial poderia transformar, de forma mais geral, o debate sobre segurança pública?

AM: Novamente, isso passa pela forma como um Estado de Direito deve operar. Um Estado de Direito é um Estado legal, constitucional e justo. Ele é um Estado de justiça do ponto de vista procedimental, porque precisa seguir procedimentos, e é também um Estado de justiça do ponto de vista material, no sentido de garantir condições dignas de existência para as pessoas.

Na medida em que as pessoas têm acesso a oportunidades educacionais, profissionais, de saúde, de trabalho, entre outras, não haverá crime. Mas o problema é que criar essas condições significa permitir que pessoas negras e pobres passem a competir por oportunidades com pessoas brancas de classe média, sendo este o ponto de tensão. É aí que se utiliza, de forma estratégica, o discurso da segurança pública para promover encarceramento em massa, chacinas e outras formas de violência estatal.

CC: O senhor costuma dizer que “o racismo é a linguagem da desigualdade”. Se o Brasil tivesse que reaprender a falar, por onde começaríamos?

AM: Pelo compromisso com a democracia, com o Estado de Direito e, especificamente, com a ideia de legalidade e os princípios de segurança jurídica. As pessoas precisam acreditar na democracia e nas instituições para que possam planejar a própria vida.

CC: Sua visita a Aracaju coincide com a realização da COP-30, em Belém. O debate sobre as mudanças climáticas está em alta, mas os espaços de decisão continuam deixando de fora comunidades negras e indígenas que estão na linha de frente das enchentes, da fome e da desertificação. O senhor enxerga a crise ambiental como também uma crise racial?

AM: Com toda certeza. Veja: um elemento central desse processo de elevação racial é compreender que as disparidades raciais são produto de dinâmicas internas dos diferentes países, especialmente daqueles que foram colônias, mas também resultam da relação entre Norte e Sul, entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos. Essa relação é, em grande parte, fruto do projeto colonial europeu, que foi um projeto de supremacia branca em escala global.

O problema das mudanças climáticas e a questão do racismo ambiental são resultado de uma pluralidade de normas que, muitas vezes, são apresentadas como neutras, ou de políticas que supostamente têm como objetivo promover desenvolvimento econômico. Mas a ideia de desenvolvimento que orienta essas normas é uma ideia que beneficia as elites locais e as elites dos países em desenvolvimento, em detrimento das condições e dos problemas enfrentados por comunidades vulneráveis.

CC: Sabemos que o racismo ambiental tem rosto, CEP e condição social. O que o letramento racial pode ensinar à política ambiental brasileira?

AM: Que é preciso ensinar o que é o racismo, o que é o racismo ambiental, enfatizar como o racismo ambiental é produto da dimensão estrutural da exclusão racial, da segregação espacial e da desvantagem econômica. É importante mostrar como processos de discriminação indireta, que são as normas gerais relacionadas ao planejamento urbano, à alocação de espaços, à decisão sobre onde algo será construído ou onde determinados dejetos serão depositados, estruturam essas desigualdades.

E o letramento racial não é apenas para que pessoas brancas possam aprender. Ele também serve para que populações minoritárias possam se articular, se mobilizar e dispor de novos argumentos para a luta, inclusive contra o racismo ambiental.

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