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Acerto de contas

Sem punir os golpistas de ontem e de hoje, a democracia seguirá em risco, alerta Eugênia Gonzaga

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O 8 de Janeiro também é resultado da ausência de justiça de transição, avalia a presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos – Imagem: Suamy Beydoun/Agif/AFP
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A falta de punição dos agentes da ditadura talvez explique por que tantas “velhinhas com Bíblia na mão” e “jovens de batom” ousaram devastar as sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, clamando por um novo golpe de Estado. “A ausência de uma justiça de transição contribuiu para o fortalecimento desse cenário, alimentando tanto a impunidade quanto a intenção de retomada arbitrária do poder”, avalia Eugênia Gonzaga, procuradora regional da República e presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Gonzaga à repórter Fabíola Mendonça. A íntegra pode ser conferida no site de CartaCapital.

CartaCapital: O Supremo Tribunal Federal discute, de forma inédita, a possibilidade de punir agentes da ditadura envolvidos no desaparecimento forçado de dissidentes políticos durante o regime militar (1964–1985). Qual a importância dessa ação para o fortalecimento da democracia?
Eugênia Gonzaga: Desde 2005, o Ministério Público Federal busca a responsabilização desses agentes, e fui uma das coautoras das primeiras ações. A iniciativa do Supremo é fundamental, mas não pode se restringir aos desaparecimentos forçados, só porque o crime de ocultação de cadáver tem caráter permanente. O Brasil já foi condenado pelo menos três vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determina a aplicação da legislação criminal a todas as violações cometidas pelo Estado brasileiro com o objetivo de perseguição generalizada, mesmo quando não possuem essa característica de permanência. Homicídios, estupros e torturas também devem ser punidos, pois não estão sujeitos à anistia nem à prescrição.

CC: O Judiciário parece ignorar a Corte Interamericana desde que o STF decidiu que a Lei de Anistia também vale para os algozes da ditadura…
EG: Só que o Brasil se vinculou voluntariamente, na Constituição Federal, a essas normas internacionais. Se o Supremo limitar a responsabilização apenas à ocultação de cadáver, casos como o do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob custódia do Estado, ficarão de fora. Há ainda a ação criminal relacionada a Inês Etienne, que envolve estupro, tortura e associação criminosa. Tudo isso escapa ao conceito de crime permanente, e o STF não pode simplesmente interromper essas ações porque elas não envolvem ocultação de corpos. Em 2010, a Corte decidiu que a Lei de Anistia beneficiava também torturadores e agentes do Estado, mas a sentença não chegou a transitar em julgado, pois menos de um mês depois veio a condenação do Brasil pela Corte Interamericana.

“Aqui a ditadura ‘caiu de velha’: os militares negociaram sua saída, com uma autoanistia”

CC: O que mudou com essa condenação?
EG: Houve o entendimento de que a decisão do STF não se aplica às graves violações de direitos humanos cometidas pelo Estado contra seus cidadãos. Já se passaram 15 anos, e é essencial retomar esse julgamento, mas de forma abrangente, não limitada apenas aos casos de ocultação de cadáver. Os processos sob relatoria dos ministros Flávio Dino e Alexandre de Moraes possuem repercussão geral e envolvem mais do que apenas crimes de ocultação. Por isso, esperamos que o Supremo adote a interpretação mais ampla estabelecida pela Corte Interamericana.

CC: Essa herança mal resolvida contribuiu para o 8 de Janeiro?
EG: Lá atrás, quando ingressamos com as primeiras ações, nos baseamos na doutrina internacional que estuda a importância da justiça de transição, incluindo medidas de memória, verdade, reparação e responsabilização dos agentes envolvidos. Na época, alertamos que, sem a implementação integral desse processo, o Brasil ficaria vulnerável ao enfraquecimento da democracia. Sem um acerto de contas, estaremos sempre sujeitos à repetição de violações. Esse é um fenômeno cientificamente estudado e doutrinariamente comprovado, com base na expe­riência de mais de cem países que enfrentaram regimes autoritários. Ainda assim, jamais imaginamos que haveria um retorno à apologia da tortura e do golpe. A ausência de uma justiça de transição contribuiu para o fortalecimento desse cenário, alimentando tanto a impunidade quanto a intenção de retomada arbitrária do poder. E, quando isso acontece, as consequências são imprevisíveis.

CC: E, 40 anos após o fim da ditadura, ainda há quem a defenda…
EG: Como costuma dizer o ministro Flávio Dino, golpes de Estado matam. A ditadura instaurada em 1964 tirou a vida de 434 cidadãos de forma documentada, além de outros 8 mil indígenas e 2 mil camponeses não identificados. Pelo menos 5 mil presos foram torturados após detenções arbitrárias, milhares foram forçados ao exílio. Todos esses fatos são oficialmente reconhecidos pela Comissão de Anistia, que já indenizou mais de 30 mil famílias desde sua criação, em 2002. O regime militar no Brasil foi brutal e desencadeou uma escalada de violência inacreditável. Diferentemente de outros países, aqui a ditadura “caiu de velha”: os militares negociaram sua saída, com uma autoanistia. Na decisão do Supremo de 2010, isso foi descrito como um pacto para restaurar a democracia. Na prática, negociou-se com vidas. O caso de Rubens Paiva, um dos mais emblemáticos, envolve ocultação de cadáver, falsidade processual e homicídio. Até hoje, não há uma resposta definitiva sobre o seu paradeiro. Tivemos uma ditadura sangrenta, em que os militares deixaram o poder quando quiseram e mantiveram o controle da transição.

CC: Será que, finalmente, aprendemos a lição?
EG: Espero que tenhamos aprendido o suficiente para reverter esse cenário. Embora muitos dos responsáveis já tenham falecido e a impunidade biológica prevaleça na maioria dos casos, é fundamental que, do ponto de vista pedagógico, o Supremo reveja sua interpretação. Os fatos precisam ser nomeados como realmente são: golpe, fratura do Estado Democrático de Direito. Esse reconhecimento é essencial para impedir que tais atos se repitam, como tentaram fazer recentemente. •

Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Acerto de contas’

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