Entrevistas
A saída é um “revogaço”
O ambientalista Rogério Rocco defende a derrubada de todos os decretos ambientais de Bolsonaro


Militante destacado na retomada do movimento estudantil nos anos 1980, o advogado Rogério Rocco foi um dos pioneiros ao inserir o debate ambiental na pauta da UNE. Entre 1999 e 2001, integrou o conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente, do qual foi coordenador-geral em 2005. Nos últimos anos, tornou-se voz ativa contra o processo de desmonte dos órgãos de fiscalização e inimigo declarado da política de terra arrasada. Na entrevista a Mauricio Thuswohl, Rocco defende a revogação dos decretos ambientais do governo Bolsonaro, primeiro passo para deter o desmatamento recorde na Amazônia. “Dar um basta a esse comportamento criminoso é um excelente começo”, afirma.
CartaCapital: O restabelecimento da participação da sociedade civil no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente foi determinado pelo STF, mas nada foi feito. É possível retomar os trabalhos do fundo nos moldes em que aconteciam anteriormente?
Rogério Rocco: A grande virtude do fundo sempre foi ter se estruturado com uma gestão integrada entre governo e sociedade. As linhas temáticas para financiamento e as ações e processos de deliberação eram muito transparentes e contavam com um controle social efetivo. O FNMA criou uma expertise na gestão de recursos ambientais copiada por fundos em todo o Brasil e também com repercussão internacional. O FNMA não é mais propriamente um fundo, é um programa do Ministério do Meio Ambiente. Trabalha com recursos orçamentários sujeitos a mudanças anuais, e seu diferencial é a arrecadação própria oriunda de 20% de todas as multas ambientais aplicadas na esfera federal.
CC: Qual o impacto do esvaziamento promovido por Bolsonaro?
RR: A mudança promovida pelo atual governo, de retirada da representação da sociedade civil, não é meramente uma troca de cadeiras. Ela de fato desmonta e destrói a estrutura que consagrou o FNMA como referência nacional e internacional. Elimina a razão de ser do fundo, que passa a ser um programa para a execução de projetos da estrutura do ministério, sem participação e controle social, portanto sem legitimação.
Rocco: “Precisamos avançar na integração federativa” – Imagem: Redes sociais
CC: Estudo divulgado pelo Inesc sobre o desmonte dos fundos ambientais constata: o FNMA “não existe mais”.
RR: De fato, não existe mais. A construção na qual os recursos de seus programas eram submetidos a um processo de aprovação legitimado pela participação e controle social e com intervenção direta da sociedade na análise, fiscalização e aprovação final dos gastos constituía a sua essência. A partir do momento em que se desconstruiu aquilo que era a sua essência, ele passou a ser mais um conjunto de letrinhas, sujeito à previsão de recursos orçamentários.
CC: As atuais fontes de receita não precisam ser ampliadas para garantir um funcionamento adequado?
RR: O que está em questão não é aumentar os recursos do fundo, pois ele pode ter dotações orçamentárias destinadas na Lei Orçamentária Anual e na garantia dos recursos das multas. No atual governo, houve uma queda muito grande na aplicação e na arrecadação de multas. Isso vai se espelhar nos próximos anos, pois há inúmeros processos em curso que deixarão de produzir resultados em razão dos mecanismos de desmonte.
CC: É possível reverter o desmonte e o aparelhamento promovidos pelo atual governo?
RR: O governo Bolsonaro tem desmontado os órgãos ambientais federais, eliminado suas competências, perseguido servidores de carreira, nomeado apadrinhados incompetentes para a direção desses órgãos, revogado e modificado normas ambientais e colocado as estruturas que antes combatiam os crimes ambientais para defender e amparar criminosos como garimpeiros, madeireiros, grileiros e milícias florestais. Dar um basta a esse comportamento criminoso é um excelente começo. Não vai ser simples, mas é perfeitamente possível e viável reverter grande parte desses retrocessos. Alguns deles foram revertidos por decisões do STF.
As estruturas de fiscalização do governo “hoje amparam criminosos”
CC: Quais as medidas urgentes para reverter o desmatamento crescente?
RR: Nos primeiros dias de um próximo governo, a partir de janeiro, é preciso reinstaurar estruturas e iniciativas, entre elas o Programa de Controle e Combate ao Desmatamento da Amazônia, antes coordenado pela Casa Civil e que chegou a reunir 14 ministérios. Além disso, é necessário revogar medidas adotadas para facilitar a vida dos desmatadores, garimpeiros e outros criminosos que avançaram sobre a Amazônia. Precisamos de um grande “revogaço” desses decretos, portarias e instruções normativas dolosamente alteradas pela gestão criminosa de Ricardo Salles e Jair Bolsonaro. Além disso, é fundamental nomear para os órgãos ambientais gente competente, servidores qualificados e comprometidos em cumprir a lei e limpar as instituições dessa horda de incompetentes e delinquentes que ocuparam esses espaços. Só assim se poderá retomar a governança da Amazônia e um processo permanente de diálogo e acordo para desenvolver a região sem desrespeitar seus potenciais ambientais.
CC: O que acha da ideia de um Sistema Único para o Meio Ambiente e Clima, como um SUS?
RR: É questão a ser pensada. Precisamos avançar na cooperação federativa para a execução da Política Nacional de Meio Ambiente. Precisamos integrar melhor os entes federados para uma execução mais harmônica entre os órgãos e mais equilibrada entre os distintos biomas. Precisamos abrir essas agendas. Toda ideia que surge com esse espírito é bem-vinda e deve ser avaliada por aqueles que querem construir uma política ambiental democrática, participativa e mais efetiva.
CC: Por que é importante revitalizar o FNMA em um eventual novo governo?
RR: Ao longo de sua história, depois de ter adquirido expertise e legitimidade, o FNMA passou a executar recursos de outros ministérios e órgãos da administração pública federal que assumiram obrigações relacionadas a medidas mitigadoras ou compensatórias relacionadas à política ambiental. Em um momento no qual a política ambiental era respeitada nas estruturas governamentais, o fundo tornou-se uma referência no governo que utilizava seus procedimentos para a descentralização e execução de recursos e obrigações orçamentárias ambientais. O fundo tem expertise, quadro técnico permanente e uma história de evolução nos sistemas de oferta de recursos e de aprovação e controle de sua execução. Essa expertise pode ser acionada assim que um governo comprometido com a participação e o controle social assumir. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A saída é um “revogaço””
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