Entrevistas

“A palavra ‘liberalismo’ nos dá a falsa ideia de defender a liberdade. Deveríamos chamar de ‘proprietalismo’”

Em entrevista a CartaCapital, Wallace de Moraes fala sobre anarquismo negro e relata episódio de discriminação racial sofrido no ano passado

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Como o racismo é reproduzido dentro das instituições? O professor Wallace de Moraes coordena um grupo de estudos que busca responder a essas questões, o Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias, do Departamento de Ciência Política da UFRJ.

A perspectiva decolonial, explica ele, entende que o pilar da formação social nas Américas é a relação entre raça e racismo. “E é por isso que até hoje, em todos os países das Américas, negros e indígenas estão em posições subordinadas”. Já o libertário inclui a ampla defesa da liberdade, desde que sempre levada à cabo pela igualdade. “Casa-se com o pensamento anarquista.”

Para Moraes, ser definir como anarquista no Brasil atual é ser discriminado e taxado de “maluco e de subversivo”. Mas completa: “Também é ser o maior defensor da liberdade, e contra todo tipo de opressão e discriminação a qualquer corpo; seja ela de cunho racial, patriarcal, religiosa ou acadêmico-científica”.

O grupo também se dedica a estudar o racismo dentro da universidade pública brasileira, cujos currículos privilegiam autores europeus em detrimento de vozes que buscam contar a visão de povos historicamente oprimidos. O próprio Moraes conta ter sido vítima na universidade. Durante uma reunião virtual do Departamento, relata, seu nome foi excluído da banca que ficaria responsável pela seleção de um novo professor.

O motivo, segundo “justificativa” de um de seus colegas em conversas de WhatsApp, seria que ele se “vitimizava” demais por questões raciais e não tinha capacidade suficiente para gerir uma banca de concurso – mesmo sendo o único professor associado presente no encontro. Após o ocorrido, a UFRJ abriu uma investigação interna, que resultou em uma advertência contra os professores.

Confira, a seguir, os destaques da entrevista:

CartaCapital: O que é a perspectiva anarquista decolonial libertária?

Wallace de Moraes: A perspectiva decolonial e a perspectiva libertária já são debatidas há mais tempo, de forma separada, mas a decolonial libertária é uma tentativa de juntar duas perspectivas que podem se ajudar do ponto de vista epistemológico, do ponto de vista de uma nova teoria e, sobretudo, do ponto de vista da luta antirracista, antipatriarcal, anti-homofóbica e anticapitalista, ou classista, para usar um termo marxista.

A perspectiva decolonial entende que a relação entre raça e racismo molda todo o Ocidente, tudo aquilo que foi construído a partir da conquista do que se convencionou chamar de América, em 1492, quando os primeiros europeus chegaram aqui, dando início ao colonialismo. Ou seja, dando início à transformação dessa região em colônias de países europeus.

E é o colonialismo, segundo a perspectiva decolonial, que dá início à época moderna; época em que os europeus criam a categoria ‘índio’, a categoria ‘preto’ e a categoria ‘branco’. Até então não existia essa diferenciação. Existem diferentes povos na África, com culturas diferentes, línguas diferentes, tal como nas Américas existiam diferentes povos indígenas. Só no Brasil, para se ter ideia, falava-se mais de mil línguas diferentes.

CC: Essa relação moldou a sociedade?

WM: A perspectiva decolonial entende que o primeiro marcador que corta todas as sociedades nas Américas é a relação entre raça e racismo. E é por isso que até hoje, em todos os países das Américas, negros e indígenas estão em posições subordinadas. Em sua ampla maioria, essas pessoas ocupam os piores empregos, têm as piores moradias, os piores salários e são as que mais são assassinadas.

A perspectiva libertária, por sua vez, casa-se com o pensamento anarquista. De forma sucinta, os dois pilares centrais do pensamento anarquista são: 1) a mais ampla defesa da liberdade; 2) a liberdade só podendo ser concretizada por meio da igualdade. A partir disso, temos um terceiro pilar: a crença na capacidade de todos os povos se autogovernarem, sem hierarquização social.

CC: Qual a diferença entre essa corrente e o marxismo? 

WM: Se os anarquistas estão de acordo com os marxistas quando a crítica é voltada à propriedade privada liberal, não estão de acordo com a ideia de que a propriedade deve ser gerida pelo Estado. Para os anarquistas, a propriedade deve ser autogerida pelo coletivo que nela trabalha, por meio de federações, de coletivos de trabalhadores que se associam para trocar aquilo que produzem em cada propriedade.

A gente pode pegar o pensamento liberal, que é o justificador, legitimador da propriedade privada; o marxismo, que faz a crítica aos liberais, defendendo que a propriedade deve ser estatal; e os anarquistas, que vão dizer que a propriedade deve ser coletiva, gerida pelo coletivo que nela trabalha. Ou seja, se para o marxismo tem um Estado que centraliza tudo, para o anarquismo, não. O anarquismo faz uma crítica profunda a todo tipo de hierarquia social; o marxismo critica a hierarquia social do capitalismo, mas propõe uma outra hierarquia, em que, no lugar dos burgueses, estariam no topo os proletários.

Então, a perspectiva decolonial libertária entende que raça e racismo cortam toda a nossa sociedade e, ao mesmo tempo, entende a necessidade de aprendermos com a teoria anarquista o papel histórico que o Estado tem cumprido na manutenção do racismo e na subalternização dos povos africanos e indígenas no País.

CC: Poderia falar sobre o anarquismo negro? 

WM: O anarquismo é uma luta constante pela liberdade e contra toda forma de opressão, toda forma de hierarquia, toda forma de imposição, de autoritarismo de um sobre o outro. Todo mundo que se insurge contra o autoritarismo, contra a hierarquia, contra a coerção, contra a opressão, está cumprindo um papel anarquista.

Estou falando isso para poder diferenciar o anarquismo negro do anarquismo europeu, que eu chamo muitas vezes de “anarquismo branco”, e que, assim como o marxismo, não está atravessado pela ideia de raça e racismo. Por quê? Porque ambos nascem no século XIX, época em que essa ideia ainda não estava posta.

Embora anarquismo europeu e o anarquismo negro tenham amplo acordo na ideia de autogoverno, defesa da liberdade e uma série de temas, o que o anarquismo negro vai fazer é diferenciar-se do anarquismo europeu dizendo que o negro, no mundo inteiro, é oprimido duas vezes: pela raça e pela classe. Ou seja, esses dois componentes são responsáveis pela opressão do negro.

CC: O que caracteriza a colonialidade do saber? 

WM: Boaventura de Sousa Santos criou o conceito de ‘epistemicídio’, juntando as palavras homicídio e episteme para indicar que há um assassinato do conhecimento dentro das universidades. Ele dizia que os saberes populares não são levados em conta dentro da universidade.

O que eu proponho é um alargamento desse conceito. Os nossos currículos, seja nas universidades, seja nas escolas, é um currículo racista porque não contempla os saberes indígenas, os saberes negros e os saberes africanos; muito menos os asiáticos e os da Oceania. O que se ensina no Departamento em que leciono são autores europeus, quase em sua totalidade homens brancos. Isso é racismo epistêmico, ou seja, o racismo dentro da episteme, dentro da produção do conhecimento. A partir do conceito de epistemicídio, criamos o conceito de historicídio, que está ligado à ausência das lutas por emancipação e resistência de negros e indígenas nos nossos currículos. Não estudamos os quilombos, não estudamos as lutas indígenas.

O historicídio é o assassinato das histórias de resistência dos povos subalternizados; indígenas e negros, principalmente. Esse conjunto – racismo epistêmico, epistemicídio, historicídio – forma a colonialidade do saber, que é essa forma de ensinar, de passar cultura e conhecimento que prioriza a Europa.

CC: O que é ser um anarquista no Brasil atual?

WM: Do ponto de vista negativo, ser um anarquista no Brasil atual é ser discriminado, é ser taxado de maluco e de subversivo. Mas isso acontece porque as pessoas, geralmente, sequer conhecem a teoria anarquista, a perspectiva anarquista.

Agora, do ponto de vista positivo, ser anarquista no Brasil atual é ser o maior defensor da liberdade, é ser contra todo tipo de opressão, é ser contra toda e qualquer discriminação a qualquer corpo; seja ela de cunho racial, patriarcal, religioso ou acadêmico-científico. Em resumo, ser anarquista no Brasil atual é ser contra toda forma de opressão, subordinação e exploração do outro, é acreditar que todos nós somos iguais, devemos viver com dignidade, liberdade e devemos ser respeitados. E, para além disso, é acreditar que temos a capacidade de nos autogovernar. Não precisamos nem de representantes, para fazer por nós o que nós mesmos podemos fazer, nem de um Estado ou de outro tipo de autoridade para nos impor a lógica de garantia do capital, da exploração, do colonialismo e da colonialidade. Ser anarquista é isso.

CC: Sob o ponto de vista anarquista, qual a relação entre liberalismo e racismo?

WM: Não dá para fazer uma defesa dos negros sem fazer uma crítica ao capitalismo e ao liberalismo, que é a ideologia política do sistema econômico capitalista. Os principais teóricos do liberalismo, John Locke, Adam Smith, entre outros, não eram contra a escravização em massa de africanos. Pelo contrário, muitos deles eram acionistas da escravização, tinham escravos. Então, esse é um componente indubitável sobre o racismo.

Locke defende que é papel prioritário do Estado garantir a propriedade privada, os contratos. Ou seja, não tem defesa dos direitos sociais, da escola pública, nada. A gênese do Estado mínimo é essa. E se é para garantir apenas a propriedade privada, do que o Estado precisa? Militarismo. Precisa das forças de repressão.

O nome “liberalismo” foi criado num contexto de luta contra o modelo absolutista, que não tinha liberdade nenhuma. Mas os liberais nunca defenderam liberdade para todos. Sempre defenderam a liberdade para os proprietários de terra; não para os trabalhadores.

A palavra ‘liberalismo’ nos dá a falsa ideia de defender a liberdade, mas, na verdade, o liberalismo defende prioritariamente a propriedade privada. Em vez de ‘liberalismo’, deveríamos chamar de ‘proprietalismo’.

CC: Qual é a crítica que o anarquismo faz à social-democracia?

WM: A social-democracia faz uma interseção entre a manutenção do sistema capitalista – grandes propriedades privadas, exploração, etc. –  e a criação de direitos sociais para os trabalhadores – regulamentação da jornada de trabalho, direitos trabalhistas, previdenciários e políticos, com a ampliação do direito ao voto etc. No caso dos Estados Unidos, os negros puderam votar só a partir da década de 60.

Então, a pergunta que surge é: os anarquistas são contra a social-democracia? Naquilo que a social-democracia cria de bom para os trabalhadores, não. Os anarquistas são críticos à social-democracia pela manutenção do capitalismo, pela manutenção do necro-racista-Estado ou pela criação de poucos direitos. Os anarquistas defendem a criação mais exacerbada de direitos, até que chegue o ponto em que o fruto do seu trabalho e do meu trabalho pertença a nós mesmos, pertença à coletividade. É isso que o anarquismo quer.

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