Entrevistas

assine e leia

A lei da bala

Décadas de arbitrariedade policial não reduziram a violência no País, ao contrário, lamenta Julita Lemgruber

A lei da bala
A lei da bala
O Estado optou pelas megaoperações e chacinas em detrimento da inteligência, afirma especialista do CESeC – Imagem: Pablo Porciúncula/AFP e Renato Cafuzo/CESeC
Apoie Siga-nos no

Ex-ouvidora da polícia do Rio de Janeiro e ex-diretora-geral do sistema penitenciário, além de integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, Julita Lemgruber acumula experiência no “campo de batalha” e na academia. Uma das criadoras, 25 anos atrás, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), pioneiro nos estudos e pesquisas do tema, Lemgruber lamenta, a despeito do excepcional trabalho desenvolvido pela entidade ao longo do tempo, não ter muito a comemorar. “Houve um agravamento dos principais indicadores de criminalidade, aumento dos homicídios, da letalidade policial e do encarceramento”, resume nesta entrevista ao repórter Maurício Thuswohl. “Ao invés de investimentos em polícia técnica e inteligente, apostamos na barbárie.”

CartaCapital: Como evoluiu a segurança pública no Brasil nos 25 anos de existência do CESeC?
Julita Lemgruber: Houve um agravamento dos principais indicadores de criminalidade, aumento dos homicídios, da letalidade policial e do encarceramento. Em 2006, a mudança na legislação sobre drogas ampliou o tamanho da pena para os casos de tráfico, contudo não determinou parâmetros objetivos para se distinguir o tráfico do uso, e o resultado foi a explosão da população carcerária no País. O modelo de segurança pública baseado no enfrentamento bélico às organizações criminosas tornou-se mais agudo, sem qualquer resultado prático. Ao invés de investimentos em polícia técnica e inteligente, apostamos na barbárie, nas megaoperações, acompanhadas de um aumento expressivo das chacinas e de mortes decorrentes de ações policiais violentas. A tentativa do controle da violência e da corrupção das polícias, por meio das ouvidorias, perdeu-se nos anos 1990. A crônica falta de investimentos nas estruturas técnica e científica tem impactado o esclarecimento de crimes. No Brasil, a média de solução de homicídios é vergonhosa. Estima-se que apenas 35% sejam esclarecidos, ou seja, 65 em cada 100 ficam absolutamente impunes. Por fim, os últimos 25 anos têm sido marcados pela letalidade policial que mata, sobretudo, jovens negros e pobres das favelas e periferias. São negros 87% das vítimas de ações violentas das polícias. E, mais, como demonstramos em pesquisa recente chamada Engrenagem Seletiva, os negros estão sobrerrepresentados em todas as etapas de funcionamento do Sistema de Justiça Criminal. Da ação das polícias às decisões judiciais e às prisões, negros são capturados por uma engrenagem seletiva, bastante reveladora do racismo da sociedade brasileira.

A média de 35% de resolução de homicídios “é vergonhosa”

CC: Quais são os atuais focos de atenção do CESeC?
JL: Atualmente, operamos a partir de três eixos principais. O primeiro na área da política de drogas, por meio do projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”, onde nosso interesse é demonstrar os custos sociais, econômicos e orçamentários da implementação da Lei de Drogas no Brasil. Já revelamos que em apenas seis estados as instituições do sistema de justiça criminal, que vai das polícias à Justiça e às prisões, consumiram mais de 7 bilhões de reais em um único ano para implementar a referida legislação. Operações policiais impactam o aprendizado de crianças e afetam a saúde dos moradores de favelas. Em 2026, teremos os resultados do custo da chamada “guerra às drogas” para todos os estados da federação. Outro eixo é o ­Panóptico. O CESeC acompanha e estuda há cinco anos o uso de novas tecnologias na segurança pública no Brasil. Câmeras de reconhecimento facial espalham-se pelo território nacional sem debate público adequado nem garantias de proteção aos direitos dos cidadãos. O Panóptico tornou-se referência no debate nacional, produzindo dados que demonstram que essas câmeras vigiam, mas não protegem. Por último, mas não menos importante, criamos a Rede de Observatórios, que opera em nove estados e monitora indicadores que as polícias não divulgam, como chacinas, linchamentos e crimes ambientais, incluindo violências contra populações tradicionais. Divulgamos permanentemente os resultados desse acompanhamento diário nas redes sociais e produzimos relatórios anuais detalhando o cotidiano de violências contra mulheres, chamado “Elas Vivem”, e de letalidade policial e racismo, chamado “Pele Alvo”.

CC: O ano termina com o PL Antifacção ainda em debate. Como a senhora avalia a versão aprovada pela Câmara dos Deputados?
JL: O Senado retirou alguns trechos mais problemáticos, como a classificação de terrorismo, a extinção do auxílio-reclusão e a proibição de voto para presos provisórios, mas manteve o aumento das penas aos líderes dos grupos e dificultou a progressão de regime. Importante dizer que não é o tamanho da pena que assusta o potencial criminoso, mas a certeza da punição. Se penas graves resolvessem o problema da criminalidade, os Estados Unidos viveriam no melhor dos mundos. Está fartamente provado que estados onde vige a pena de morte não têm índices de crimes mais baixos. A proposta mais importante do PL Antifacção é a criação das Forças Integradas de Combate ao Crime Organizado, com a participação de polícias estaduais, Polícia Federal, Ministério Público, Coaf, Abin, Receita Federal e Banco Central. Sem dúvida alguma, pode ser um mecanismo eficaz de integração institucional das investigações, como se viu recentemente em operações como a Carbono Oculto, contra o PCC em São Paulo.

Castro elevou a outro patamar uma estratégia de 30 anos no Rio de Janeiro – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

CC: O que acha da proposta de um referendo sobre a redução da maioridade penal para 16 anos do relator da PEC da Segurança Pública?
JL: Propostas de redução da maioridade penal aparecem de tempos em tempos no debate público como solução para os problemas da segurança. Em primeiro lugar, não há qualquer sustentação empírica da tese de que reduzi-la contribui para a queda da criminalidade ou do crime organizado. Ao contrário, precisamos levar em conta que as facções criminosas se fortaleceram a partir das prisões. Reduzir a maioridade penal significa aumentar o recrutamento dos muito jovens, a partir das unidades prisionais, para atuar no mundo do crime.

CC: Os deputados do Centrão pretendem desidratar o que enxergam como “concentração excessiva” de atribuições no governo federal. Como equacionar satisfatoriamente esse ponto?
JL: Embora os estados sejam constitucionalmente responsáveis diretos pela segurança pública, o governo federal não pode se eximir da responsabilidade de atua­r na coordenação e articulação entre as forças de segurança estaduais e federais na construção de um plano de combate às organizações criminosas que hoje têm atuação nacional e internacional. A Carbono Oculto é um exemplo de operação que contou com a integração de vários órgãos estaduais e federais e conseguiu enfraquecer o poder econômico do PCC sem trocar tiros ou provocar mortes, atuando de forma estratégica e eficiente. Ações como essa devem ser o nosso Norte.

“A sociedade não pode aceitar a forma como a polícia atua no Rio e em outros estados”

CC: O debate sobre segurança pública está sequestrado pela extrema-direita?
JL: A extrema-direita, de modo geral, faz uso de um discurso imediatista, tentando seduzir a população com a justificativa de que a segurança pública só pode ser assegurada quando se vive sob verdadeiro “estado de exceção”, onde a polícia praticamente tem licença para matar. O governo Lula precisa, mais que nunca, promover campanhas de esclarecimento para que se demonstre o que funciona, de fato, na segurança pública. O Brasil é um caso de sucesso na redução da Aids e do uso do tabaco, e conseguimos essas vitórias por meio, sobretudo, de campanhas de educação pública muito corajosas.

CC: O que dizer da “estratégia da matança” para combater o crime organizado adotada pelo governo do Rio de Janeiro e replicada em outros pontos do Brasil?
JL: Essa estratégia absolutamente ineficaz se repete há ao menos 30 anos no Rio de Janeiro, mas no governo de Cláudio Castro atingiu outro patamar. As maiores chacinas da história da segurança pública aconteceram em seu governo. Considerar uma operação vitoriosa com a morte de 117 civis e cinco policiais é um escárnio. A sociedade não pode aceitar e é preciso normalizar a forma como a polícia atua no Rio e em outros estados. No Brasil, as polícias foram responsáveis, em 2025, por mais de 6 mil mortes. Em qualquer país civilizado esses números derrubariam governos. Fica a pergunta: estamos mais seguros? Alguém duvida de que na Penha e no Alemão já não estejam a postos dezenas de jovens, pobres e negros, ocupando o lugar daqueles que morreram? Quanta hipocrisia. •

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A lei da bala’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo