Educação

Volta às aulas: “Quem vai se responsabilizar quando o primeiro aluno ou professor morrer?”

Fernando Cássio, pesquisador da UFABC, critica campanha de sindicato do Rio de Janeiro pela volta das aulas em escolas particulares

Créditos: EBC
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Uma campanha do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Rio de Janeiro (Sinepe-Rio) pela volta às aulas nas escolas particulares é alvo de críticas por parte de educadores.

No vídeo, que circula nas redes sociais desde domingo 26, a organização reitera que as unidades estão prontas para a retomada das aulas e adere ao tom negacionista para minimizar a importância do distanciamento social – estratégia recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e adotada em todo o mundo democrático – e incentivar a volta dos estudantes.

“Os meses se passaram, aprendemos a conviver com o vírus. A covid nunca irá de todo, o que acaba é o medo. Hoje sabemos lidar, tratar, nos proteger, respeitando as rotinas, as regras e os protocolos. Estamos prontos, fizemos o dever de casa. A escola privada está pronta para reiniciar. Vimos que a ciência é a vacina. Estudos só confundiram. Trancar todos em casa não é ciência. Confinar é desconhecer, é ignorar, subtrair vida, é fragilizar, debilitar, mexer com o emocional. As crianças precisam voltar a se relacionar, brincar, refazer laços, amizades, rever seus amigos. hora de reflorir. Recriar no novo tempo. O Sol precisa tornar a brilhar”, diz o vídeo de pouco menos de um minuto.

Fernando Cássio, pesquisador e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), vê “perversidade” na narrativa.

“Além de negacionista, a mensagem de que ‘confinar é subtrair a vida’ é paradoxal. Mostra que, para os mantenedores das escolas e empresários, o fechamento das unidades é indesejado pelo fato de perderem matrículas, seus contratos de prestação de serviço educacional. O que está em jogo agora é justamente o contrário, é a discussão de o quanto a abertura das escolas vai colocar vidas em risco”, critica.

Para Cássio, a justificativa do sindicato é também “simplória” ao considerar apenas a dinâmica das crianças diante o cenário da epidemia no País.

“Primeiro que os cuidados com as crianças e adolescentes não estão descartados, por elas serem supostamente ‘assintomáticas’ . Depois, e os professores, os demais profissionais da escola, as famílias? Além de propiciar o contato direto, abrir escolas é aumentar deslocamento, levar mais pessoas para dentro do transporte público, isso tudo precisa ser considerado”, reitera.

Na avaliação do pesquisador, predomina o lobby do setor. “É um discurso economicista, feito não só por esse ‘varejo’ dos mantenedores de escolas privadas, mas também por fundações e institutos empresariais, que insistem que o dano econômico ao País por conta do fechamento das escolas é justificativa o suficiente para abertura massiva das unidades escolares. É como aquele ‘O Brasil não pode parar’ do governo Bolsonaro”, avalia.

Um levantamento da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), atualizado na segunda-feira 27, mostra que 11 estados têm proposições de datas para a retomada: Acre, Alagoas, Distrito Federal, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande de Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Manaus foi a primeira capital do País a permitir a retomada das aulas presenciais desde o dia 6 de julho. Segundo o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Privado do Estado do Amazonas (Sinepe-AM), das 200 escolas particulares da cidade, 70% reabriram, mobilizando um total de 87.900 estudantes.

O sindicato reitera que a retomada está alinhada com as diretrizes mundiais e estaduais de saúde. As escolas vêm lançando mão de estratégias variadas para receber os alunos, desde rodízio com diminuição das turmas, até orientações para que não utilizem sapatos, façam recreio em duplas, sigam demarcações de distanciamento e regras de higienização frequentes. As diretrizes variadas constam em um plano estratégico do Sinepe, disponibilizado à reportagem.

O estado do Amazonas, sob a gestão de Wilson Miranda Lima (PSC), sinalizou que deve apresentar nesta terça-feira 28 a data de volta das aulas presenciais na rede pública. Uma coletiva de imprensa está marcada para às 9h30.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), afirmou que a prefeitura trabalha para o aval da reabertura das escolas particulares a partir do dia 3 de agosto para os alunos dos 4º, 5º 8º e 9º anos do Ensino Fundamental, os mais prejudicados pela pandemia. A retomada facultativa, afirmou, seria um teste para a rede do município, que ainda não tem data para reabertura.

Para Cássio, a decisão de Crivella certamente sofre influência do Sinepe-Rio. No estado, o último decreto do governador Wilson Witzel (PSC) mantém as escolas da rede estadual fechadas até o dia 5 de agosto.

Em São Paulo, a retomada das escolas públicas e privadas não deve mais acontecer no dia 8 de setembro, conforme anunciado anteriormente pelo governador João Doria (PSDB). A condicionante seria que todas as regiões do estado se mantivessem por pelo menos 28 dias na fase 3 (amarela) do Plano São Paulo, possibilidade que foi descartada pelo coordenador executivo do Centro de Contingência do combate ao coronavírus em São Paulo, João Gabbardo, na sexta-feira 24. Ele afirmou, no entanto, que está em estudo a possibilidade das escolas municipais que estão em regiões amarelas há mais tempo puxarem a retomada.

Já no Distrito Federal, a tentativa do governador Ibaneis Rocha (MDB) de liberar a retomada aulas nas escolas particulares a partir da segunda-feira 27 foi barrada pela Justiça por um período de dez dias. A ação movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra a reabertura foi acatada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10) . Os procuradores lembraram que o Distrito Federal está no pico e com ocupação de leitos acima dos 80% e argumentaram que as escolas deveriam ser os últimos estabelecimentos a abrir.

Um levantamento feito pelo consórcio de imprensa e divulgado no último dia 21 mostra que 11 estados tiveram aceleração na variação em número de mortes em 14 dias: Amapá, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e Tocantins.

 

Entre as famílias também não há unanimidade quando o assunto é retomar as aulas. Dados da pesquisa nacional “As escolas brasileiras no contexto do coronavírus”, feita a pedido da União pelas Escolas Particulares de Pequeno e Médio Porte, e divulgada este mês, revelam que 73,7% dos pais e responsáveis se recusariam a enviar os filhos para as escolas caso elas reabrissem. Para 40%, o retorno deveria acontecer somente em 2021.

Entre os pais e responsáveis que não enviariam os filhos paras as escolas, 51,9% apontaram como principal motivo a indefinição sobre medidas preventivas que devem ser tomadas para preservar a saúde e 21,8% afirmaram que esperariam um pouco para saber como seria o processo.

O estudo ouviu 14.307 responsáveis por estudantes em 407 instituições de todo o país, desde a educação infantil até o ensino médio.

Cássio afirma que não há como garantir nem que as escolas privadas tenham as mesmas condições de lidar com a pandemia em seus ambientes.

“Há colégios de elite que estão recorrendo a parcerias com hospitais como o Albert Einstein [caso do colégio Visconde de Porto Seguro, em São Paulo,  que contará com a equipe do hospital para a definição de um plano estratégico]. Essa não é a realidade da maioria das escolas de pequeno ou médio porte, com ensino apostilado massificado”, atesta. O desafio, certamente, é ainda maior quando alçado às redes públicas, que atendem mais de 80% dos alunos de ensino fundamental e médio do País, segundo dados da Pnad 2019, do IBGE.

“Estamos falando de 2,2 milhões de professores no País, sem contar os demais profissionais que estão diariamente dentro das escolas. Vamos fazer testagem em massa para que possamos colocar essas pessoas no front? Vamos contratar mais gente? Direcionar mais recursos para as escolas? Grande parte das escolas públicas já não garantiam sabonete e papel higiênico antes da pandemia, o que agora se soma à necessidade de desinfetante, álcool em gel e Equipamentos de Proteção Individual (EPI)”, avalia, referindo-se, sobretudo, a uma realidade mais comum aos alunos pobres e negros que vivem na periferia das grandes cidades.

“Quem vai se responsabilizar quando o primeiro aluno ou professor morrer?”, questiona. “Estamos discutindo uma retomada como se a pandemia tivesse sido superada, e sabemos que esse não é o cenário”, critica o pesquisador, que ainda avalia o cenário do ponto de vista do direito à educação.

“Se estamos falando de um direito que deve ser garantido a todos, o Estado – que é tão responsável pela oferta do ensino público quanto pela regulamentação do ensino privado – não pode aceitar qualquer diferenciação entre estudantes e profissionais da educação de escolas públicas e privadas. O sol deveria ‘brilhar’ para todos. Os professores e estudantes das escolas privadas vão ser expostos à contaminação porque os donos das escolas precisam manter seus negócios? E as escolas públicas? Vão abrir as portas porque uma ínfima parte de escolas de elite se sentem ‘prontas’ para o retorno?”, expõe, ao novamente questionar a narrativa do Sinepe-Rio.

“Muitas famílias trabalhadoras nunca pararam suas atividades e não têm sequer onde deixar os filhos. As pessoas não são contra a abertura das escolas por capricho, ou porque estão vivendo na fartura. As pessoas têm medo.”, problematiza.

Por fim, o educador reconhece que o fechamento inevitável das escolas traz perdas para todos. Um dos exemplos são as diversas dificuldades com o ensino remoto em todo o País.

“Mas não falo só de perdas de ‘aprendizagem’ medidas em testes padronizados. Há uma perda para a educação num sentido muito mais amplo, da socialização, dos afetos, da subjetividade, vai além das competências e habilidades da Base Nacional Comum Curricular, entende? Então veja, o ano letivo já está perdido. Cabe então se perguntar: vale a pena ir para a escola e colocar a minha própria vida e daqueles que eu gosto em risco?”, finaliza.

A reportagem de CartaCapital tentou contato com o Sinepe-Rio para que o sindicato se posicione frente às críticas, mas não obteve sucesso até o fechamento desta reportagem.

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