Mahommah Gardo Baquaqua nasceu em Dijogou, atual região norte do país africano Benim. Muçulmano, era filho de um importante comerciante local, aprendeu a ler e a escrever em uma escola islâmica e atuava em rotas comerciais em seu país de origem. Sua vida, porém, acabou atravessada pelo tráfico e exploração do trabalho escravo, ainda vigente no século XIX.
Escravizado, Baquaqua foi enviado ilegalmente para o Brasil em um navio negreiro, quando o tráfico de pessoas já era proibido em terras tupiniquins. Desembarcou no litoral de Pernambuco em 1845 e passou pelo Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul antes de chegar à Nova York e conseguir a liberdade.
Lá, escreveu, em inglês, a autobiografia que é o único registro conhecido sobre a escravidão no Brasil do ponto de vista de um escravo. Os relatos impressionam. “Fomos arremessados, nus, porão adentro, os homens apinhados de um lado, e as mulheres de outro. O porão era tão baixo que não podíamos ficar de pé, éramos obrigados a nos agachar ou sentar no chão. Dia e noite eram iguais para nós, o sono sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos”, conta, sobre o trajeto que o levou até o continente americano.
Em outro trecho, relata: “Que aqueles ‘indivíduos humanitários’ que são a favor da escravidão se coloquem no lugar do escravo no porão barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da África à América, sem sequer experimentar mais que isso dos horrores da escravidão: se não saírem abolicionistas convictos, então não tenho mais nada a dizer a favor da abolição.”
Publicado originalmente em 1854 durante a campanha abolicionista norte-americana, sua autobiografia não está, é pouco conhecida por falantes da Língua Portuguesa.
Com o objetivo de levar a história de Baquaqua para além dos muros da Academia, onde já é relativamente conhecido nos círculos de historiadores da escravidão, o pesquisador brasileiro Bruno Verás, em conjunto com o historiador Nielson Bezerra, está em vias de finalizar uma edição em português da biografia de Baquaqua (de Paul Lovejoy e Robin Law) além de um site e um livro interativo sobre a trajetória do ex-escravo. O livro será lançado pela editora Civilização Brasileira.
Conjugados, site e livro interativo formam o “Projeto Baquaqua”, que estará no ar no final de novembro. “A ideia é que o site seja multilíngue. A primeira versão será em português, depois inglês, francês e haussa”, explica, ressaltando que todos são idiomas que se relacionam com os espaços em que Baquaqua viveu. Depois da passagem pelo Brasil e pelos EUA, o africano esteve no Haiti, em Ontário, no Canadá, e em Liverpool, na Inglaterra.
Entre os desafios enfrentados durante a produção da tradução do relato de Baquaqua, Verás cita as cartas escritas pelo ex-escravo, presentes na nova edição. “Ele estudou inglês durante três anos em Nova York, mas seu inglês escrito não era perfeito, tinha erros de gramática, por exemplo. Faremos a tradução corrigindo os erros, mas é importante para os pesquisadores saberem o quanto ele podia escrever”, conta. Por isso, optou-se por reproduzir os trechos integralmente, em inglês, nas notas de rodapé.
Além de documentos históricos acompanhados de textos explicativos e entrevistas em vídeo com pesquisadores africanos, canadenses e brasileiros, completa o projeto um livro interativo, ilustrado por Tatiane Lima, feito para ser impresso e utilizado pelo público infanto-juvenil. Para aproximar a história de Baquaqua da linguagem das crianças, Tatiane optou por ilustrações no estilo cartum, sempre com o cuidado de não incorrer à erros historiográficos.
O site é financiado pelo Ministério da Cultura com apoio da Universidade Federal de Pernanbuco, York University e The Harriet Tubman Institute.
Além de dar visibilidade à narrativa de Baquaqua, outro objetivo do projeto é construir uma relação de empatia com sua história e com a de outros africanos escravizados no Brasil. “O legal de trabalhar com autobiografias e biografias é mostrar que, mais do que estudar a escravidão, estamos estudando pessoas.”, afirma o pesquisador da York University, no Canadá. “Esse tipo de história com nome, rosto, sentimento e personalidade possibilita que a criança crie uma relação de empatia com o personagem”.
Verás ressalta que, em geral, pensamos os africanos como braços para para o trabalho escravo, mas a realidade vai muito além disso. “Antes eram mentes e ideias, pessoas com concepções de mundo diferentes, que criavam laços e estratégias, mesmo diante da escravidão”. Dessa forma, afirma o pesquisador, o projeto também ajuda no trabalho de desconstrução de estereótipos sobre aqueles que viveram como escravos no Brasil.
Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.
Já é assinante? Faça login