“Esta é a quarta carta que inicio para responder a sua. A primeira eu deixei no Brasil, só trouxe a primeira página, que vai junto. A segunda eu rasguei. A terceira eu não acabei, vai junto também. (..) Você por favor não ligue para isso não. Pode ter certeza de que não te esquecemos”.
O trecho da carta enviada por Fernando Sabino, de Nova York, para a amiga Clarice Lispector, que então morava na Suíça, evidencia a importância que a correspondência postal, hoje em vias de extinção, representava para amigos e parentes separados pela distância.
Eram as cartas que traziam as notícias de outras terras e as novidades pessoais, permitindo o diálogo e o debate entre destinatário e remetente.
Por esse motivo, são também importantes documentos históricos que ajudam a recompor os costumes e pensamentos em voga em diferentes épocas.
Detentor de vasto acervo epistolar, o Instituto Moreira Salles agora compartilha com o público a correspondência de diversas personalidades do Brasil, dentre as quais Dom Pedro II, Ana Cristina Cesar, Drummond, Castro Alves, Imperatriz Maria Leopoldina, Mario Quintana e Machado de Assis, na plataforma batizada de Correio IMS.
“A ideia para o projeto surgiu em 2014 observando sites dedicados às cartas em outros países como França, Estados Unidos e Inglaterra. É uma prática já bastante valorizada lá fora. Então propus fazer o mesmo com nosso acervo, o que foi aceito imediatamente”, conta Elvia Bezerra, coordenadora de literatura do IMS e responsável pelo site.
No ar desde agosto, o site conta com mais de 100 cartas de pessoas comuns a escritores, artistas, músicos, arquitetos, enfim, figuras da história cultural e política do País.
Além do próprio acervo do IMS, o site também conta com cartas oriundas de outras instituições e já publicadas em livros. O critério para a seleção dos documentos é bastante subjetivo, conta Elvia.
“Selecionamos cartas que julgamos relevantes, notáveis, sob os mais diferentes aspectos. Pode ser literário, musical, histórico. Privilegiamos cartas sedutoras, atraentes e que permitam conhecer a história do Brasil”, explica. “Tem cartas de anônimos e cartas essenciais como a carta-testamento de Getúlio Vargas que vai entrar no site em breve”.
Para ajudar a navegação do internauta, todas as cartas estão precedidas de um parágrafo que faz a contextualização do documento, indicando as circunstâncias em que foi escrito.
Além disso, a ferramenta traz um breve perfil biográfico de todos os remetentes e destinatários citados e notas de rodapé que adicionam comentários e esclarecem informações que o leitor pode vir a desconhecer. Há também galeria de imagens, vídeos, áudios e um blog dedicado ao assunto.
Alguns dos textos revelam os bastidores de importantes obras da literatura e música brasileira, como uma carta de Erico Verissimo dirigida a Lygia Fagundes Telles, na qual comenta o conto A estrutura da bolha de sabão”escrito pela paulistana: “(…) achei teu conto sobre a bolha de sabão uma joia. Li-o duas vezes. A primeira vez como o leitor de ficção que sou. A segunda, com olho de oficial do mesmo ofício. Repito, é uma joia”.
Ou a troca de correspondência entre Chico Buarque e Vinícius de Moares que revela uma discordância em relação à música Valsinha, que Vinícius queria batizar Valsa hippie.
Na carta, Chico expõe seus argumentos para manter o nome original. “Recebi as suas duas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. (…) Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta”.
A navegação pela plataforma pode ser feita utilizado como critério o ano, remetente, destinatário ou tema como saudade, ciúmes, amor, amizade e literatura. O site será atualizado frequentemente com novos documentos e prevê também a publicação de cartões-postais, bilhetes e telegramas.
Em tempos de correio eletrônico, o portal chega a ser uma homenagem ao exercício de escrever cartas.
“Temos esses dois objetivos. Preservar esse gênero textual que está praticamente em extinção, fazendo esse diálogo com as novas gerações. E também tem a preocupação de criar um arquivo sobre o tema”, diz Elvia.
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