Educação

RUs combatem a fome e a evasão, mas falta política de segurança alimentar no ensino superior

Pesquisas apontam que fome é mais frequente entre cotistas; governo Lula aposta em projeto que transforma assistência estudantil em política de Estado com abastecimento de RUs pela agricultura familiar

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por Pedro Nakamura, de Porto Alegre 

No retorno às aulas presenciais após as restrições causadas pela pandemia, pesquisadoras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) decidiram medir como estariam os índices de segurança alimentar dos estudantes. No início de 2022, quase mil calouros responderam como se alimentavam por questionários online. O objetivo era comparar essa coleta inicial com novas nos semestres seguintes para medir os impactos do restaurante universitário na dieta desses alunos. “Achamos que os estudantes poderiam estar comendo pior por não frequentarem a universidade”, diz a nutricionista Daniela Canella, professora do Instituto de Nutrição da Uerj, que explica a hipótese que norteou o estudo. “E, em alguma medida, a quantidade de alimento não só dos estudantes, mas da família, poderia estar sendo prejudicada porque aí é mais uma pessoa para comer em casa.”

Os resultados dessa coleta inicial foram assustadores. Mais de um terço (36%) dos calouros viviam em situação de insegurança alimentar, conforme dados preliminares do estudo, antecipados com exclusividade ao Joio. Desse total, um aluno a cada sete (14,8%) tinha fome – ou seja, faltava comida em casa – e por volta de um quinto (21,2%) enfrentava “insegurança alimentar sem fome”, que é quando se abre mão da qualidade dos alimentos para se ter o que comer. Canella explica que há uma dimensão qualitativa e outra quantitativa em índices do tipo. “Primeiro você deixa de ter uma alimentação de qualidade para ter qualquer uma, e depois deixa de ter quantidade”, diz a nutricionista.

Os números pioram quando são separados entre cotistas e não cotistas. Mais da metade (53,2%) dos estudantes que entrou na Uerj por cota estava em uma dessas situações de insegurança alimentar contra cerca de 28% dos não cotistas. 

COTISTAS x NÃO COTISTAS

São indicadores que mostram como a fome ronda universidades no pós-pandemia. Não há, no entanto, índices nacionais que meçam a segurança alimentar e nutricional no nível superior brasileiro. A gestão dos restaurantes universitários (RUs)  é descentralizada devido a autonomia das universidades e não há dados sistematizados entre instituições federais e estaduais. Apesar de nada impedir que o Ministério da Educação (MEC) faça um levantamento do tipo, hoje a sistematização dessas informações depende de pesquisas de pós-graduação, como o estudo coordenado por Canella. 

Mesmo com a falta de dados, uma coisa é certa: os RUs são essenciais para garantir o direito à alimentação saudável a estudantes, especialmente cotistas. Ainda que esse último levantamento das pesquisadoras da Uerj não tenha sido concluído, estudos anteriores já comprovaram a importância desses equipamentos na própria instituição. Entre 2011 e 2013, a nutricionista Patrícia Perez, professora do Instituto de Nutrição e diretora do Departamento de Assistência Alimentar e Mobilidade Espacial (PR-4) da universidade, analisou o impacto da implementação de um RU no campus Maracanã, no município do Rio de Janeiro, em sua tese de doutorado. 

Ela constatou que, antes do RU, inaugurado em 2011, era frequente estudantes não tomarem café da manhã, substituírem refeições por lanches, consumirem poucas frutas, feijão ou hortaliças, além de ingerirem regularmente bebidas açucaradas ou guloseimas. Depois do restaurante, a qualidade da alimentação de todos os alunos melhorou, o que também reduziu desigualdades alimentares entre não cotistas e cotistas. 

“Quem mais foi ao RU, consumiu mais feijão, hortaliças cruas ou cozidas e frutas, e teve menor frequência de consumo regular de batata frita ou salgados fritos”, exemplifica Perez, que ressalta que o preço acessível é um princípio importante para o sucesso da fórmula. “Essa medida de caráter universal, mas com um componente de facilitação do acesso para o grupo economicamente mais vulnerável, atendeu à equidade, que é central em políticas públicas”, avalia. 

Preço importa

Hoje, não há um preço tabelado que padronize o valor das refeições em RUs no país. O custo varia conforme a instituição, chegando a R$ 15 como na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Também não existe uma regra nacional para a quantidade de refeições oferecidas por dia – nem todos servem café da manhã ou jantar. O da Uerj, por exemplo, custa R$ 3 para não cotistas e R$ 2 para cotistas, servindo almoço e jantar, porém sem desjejum. Já na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), só cotistas têm direito a café da manhã, enquanto  as demais refeições custam R$ 1,30. E na Universidade de Brasília (UnB), alunos de baixa renda estão isentos, mas não cotistas precisam desembolsar R$ 6,10 para almoço ou jantar.

“O que temos pedido é que mais RUs garantam a qualidade e diminuam os preços” diz a estudante de Engenharia Ambiental Manuella Mirella, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE),  que explica que as reclamações mais frequentes são justamente relacionadas a preços altos ou à ausência de restaurantes – a maior parte das universidades privadas e muitas das estaduais, por exemplo, sequer têm equipamentos do tipo. “Com fome, ninguém estuda”, define. Na avaliação da presidente da UNE, junto às bolsas de permanência, RUs são a principal política de combate à evasão universitária do país.

‘Com fome, ninguém estuda’, Manuella Mirella, presidente da UNE

De acordo com Patrícia Perez, quase a totalidade das universidades federais possuem RU, conforme um levantamento realizado em sites de instituições de ensino superior públicas em 2021. De 63 instituições federias, 59 os têm. Já entre as estaduais, 29 contam com RUs contra 17 sem. Esses dados são de um capítulo de um livro ainda não publicado que Perez escreve com outras duas pesquisadoras. 

Uma universidade ter restaurante, no entanto, não é garantia de cobertura para todos os estudantes. A própria Uerj está presente em sete municípios fluminenses, mas campi de apenas dois, Rio de Janeiro e Nova Friburgo, têm RUs. Além disso, essas unidades dependem da mão de obra terceirizada, já que o poder público não faz mais concursos para vagas que não estejam ligadas diretamente à atividade-fim das universidades, como as de cozinha ou limpeza.

Falta uma política nacional

O primeiro restaurante universitário do país foi criado nos anos 1960, na atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como resposta a uma demanda que existia no movimento estudantil desde a Era Vargas. Até hoje, no entanto, ainda falta uma política nacional. “Hoje os preços, cardápios e refeições diferem e as universidades até mesmo podem não adotar um restaurante universitário porque não é uma obrigação”, explica Perez, que ressalta que a coisa mais próxima de uma política de segurança alimentar universitária hoje é o Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes). “Um dos desafios é transformá-lo em lei porque hoje ele fica à deriva”, diz.

Criado em 2008, o plano existe para apoiar financeiramente alunos de baixa renda de instituições federais de ensino e nele estão incluídas dez modalidades de apoio aos alunos, como moradia estudantil, saúde, transporte e alimentação. Ainda que beneficiem também não cotistas, as políticas de RUs são tratadas no âmbito do Pnaes, em tese um plano destinado somente a estudantes de baixa renda. Ao longo da gestão Jair Bolsonaro, no entanto, as universidades federais foram alvo de seguidos cortes e bloqueios orçamentários que comprometeram esses recursos. 

Entre 2014 e 2020, por exemplo, o governo federal costumava gastar R$ 1 bilhão ao ano com ações de “Assistência ao Estudante de Ensino Superior”, segundo dados da plataforma Siga Brasil, do Senado Federal. Mas, em 2021, houve um corte de 23%, ombo que reduziu o custeio da área a R$ 777 milhões. Até agora não houve recomposição. Em 2023, o governo Lula investiu R$ 959 milhões em assistência estudantil universitária, um patamar superior ao dos últimos anos de Bolsonaro, mas compatível com os níveis de 2013.

De plano de governo à política de Estado

Hoje, um projeto de lei (PL) transforma o Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) em lei, fazendo dele uma política de Estado, e não mais de governo. O PL aguarda revisão do Senado desde novembro. A proposta agregou em um único texto mais de 20 projetos de deputados ligados à assistência estudantil universitária, trabalho que teve a relatoria da deputada Alice Portugal (PCdoB-BA). Até o momento, o Senado ainda não designou um relator para revisar o PL aprovado pela Câmara Federal em novembro de 2023

Restaurante Universitário do Campus Darcy Ribeiro, na UnB (Foto Emília Silberstein/Secom/UnB)

Uma das medidas previstas no PL é a criação de um Programa de Alimentação Saudável na Educação Superior (Pases), que permitiria às universidades comprarem produtos da agricultura familiar por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), uma demanda antiga de gestores de RUs. Ao Joio, o MEC disse contar com a aprovação do projeto. 

“Todo mundo quer fazer [compras da agricultura familiar], mas não consegue porque há muitos impedimentos burocráticos”, explica a nutricionista Muriel Carneiro, coordenadora da Rede RU, criada em 2020, que reúne profissionais vinculados a restaurantes de 13 universidades. “A universidade tem que fazer um trabalho para sensibilizar a terceirizada e o próprio gestor precisa entender que é caro, mas necessário”, diz Carneiro, que afirma haver endosso do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) à iniciativa, pelo impulso que seria gerado à agricultura familiar por mais compras institucionais nos moldes do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que hoje abastece as merendas de escolas com alimentos de cooperativas e pequenos produtores rurais.

Em nota, o MEC disse que só a partir da aprovação e sanção do PL que poderá coletar mais dados sobre a segurança alimentar estudantil e criar diretrizes comuns para os restaurantes. Hoje, a pasta não produz esse tipo de índice. Um dos planos é tornar gratuita a alimentação para estudantes inscritos nos programas de assistência estudantil, providência já tomada por algumas universidades. “Os recursos do Pases deverão garantir as condições para a oferta de alimentação saudável e adequada nessas instituições federais por meio de restaurantes universitários”, disse a pasta.

O texto do PL, no entanto, não prevê diretrizes ou índices mínimos de investimentos para esses gastos com alimentação. Não diz, por exemplo, se o recurso deve subsidiar também a alimentação de não cotistas, ou se haverá um volume mínimo que o orçamento federal deve separar para o programa. Na prática, como ocorreu na gestão Bolsonaro, a verba se mantém sujeita a cortes que ameacem as políticas de assistência estudantil.

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