Educação

Rosely Sayão: ‘Temos ideias absolutamente equivocadas a respeito da sexualidade’

Em entrevista a ‘CartaCapital’, a psicóloga comenta a relação entre a ausência da educação sexual nas escolas e a recente pesquisa do IBGE a respeito do comportamento sexual dos adolescentes brasileiros

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Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil |
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Os adolescentes brasileiros têm iniciado a vida sexual mais cedo, mas se protegido menos contra infecções sexualmente transmissíveis – caso do HIV e outras doenças como sífilis, gonorreia, alguns tipos de hepatites – e casos de gravidez indesejadas.

Uma pesquisa do IBGE, divulgada em julho, mostra que, entre 2009 e 2019, diminuiu 51,3% o uso da camisinha entre adolescentes de 13 a 17 anos que já tiveram relações sexuais, um decréscimo de 7% ao ano.

O estudo também mostrou uma certa estabilidade na iniciação sexual dos adolescentes, mas com diferenças de comportamento entre meninos e meninas. O percentual de estudantes do 9º ano das capitais que já tinham tido relações sexuais oscilou de 27,9% em 2009 para 28,5% em 2019. No entanto, os meninos tiveram queda de 5,8% ao ano na chance de iniciação sexual, acumulando no período uma variação negativa de 45,2%, enquanto a chance de as meninas iniciarem a vida sexual na adolescência aumentou em torno de 4% a cada ano, com uma variação de cerca 41% no período 2009-2019.

Entre 2009 e 2019, a taxa de iniciação sexual das meninas aumentou de 16,9% para 22,6%, enquanto a dos meninos caiu de 40,2% para 34,6%.

O estímulo para que as meninas iniciem suas vidas sexuais, também passa pelas redes sociais, por sites que sugerem ganhos financeiros

Convidada pela reportagem de CartaCapital a refletir sobre os dados, a psicóloga Rosely Sayão atribui o cenário à ausência de um trabalho pedagógico sobre educação sexual, fruto dos diversos embates e distorções que a agenda vem sofrendo por lideranças políticas e grupos conservadores. “Nós temos uma ausência muito grande, um silêncio a respeito da educação sexual tanto nas escolas, quanto nas famílias. E aí não dá para discutir questões de gênero, sociais, que interferem na vida sexual”, reflete.

“A grande questão, o que está em jogo, é a capacidade de ajudarmos os adolescentes a entenderem todo o contexto da sociedade em que eles vivem, a esclarecermos temas que envolvem a sexualidade para que eles possam desenvolver um raciocínio crítico e, mais tarde, no momento em que for necessário, eles possam fazer escolhas bem informados”, alerta.

Confira a seguir.

CartaCapital: Como você avalia o fato dos adolescentes, e sobretudo as meninas, estarem iniciando a vida sexual mais cedo?

Rosely Sayão: Essa é uma questão multifatorial, que pode ser vislumbrada a partir do mundo em que eles vivem, da pressão sociocultural que sofrem para que tenham uma vida sexual ativa. Com os meninos, historicamente, isso sempre aconteceu, então essa pressão não é novidade, nem mesmo o fato de muitos já terem se acostumado a conviver com ela, sem reagir ou responder. Agora, há um estímulo muito grande para as meninas iniciarem suas vidas sexuais, isso também passa pelas redes sociais, por sites que sugerem ganhos financeiros com determinados tipos de fotos, e que acabam antecipando os relacionamentos.

CC: Isso é preocupante?

RS: Sim, na medida em que temos uma ausência muito grande, um silêncio a respeito da educação sexual tanto nas escolas, quanto nas famílias. Com isso, não conseguimos discutir com os jovens as questões de gênero, as questões sociais que interferem na vida sexual. Precisamos ajudar os adolescentes a entenderem o contexto da sociedade em que eles vivem, abordar temas que envolvem a sexualidade para que eles possam desenvolver raciocínio crítico e garantir que, mais tarde, no momento necessário, eles possam fazer melhores escolhas, estando mais bem informados.

CC: A educação sexual nas escolas vem sendo não só combatida, mas também distorcida, com falsas acusações de que o objetivo seria iniciar crianças e adolescentes precocemente na vida sexual. Como você avalia esse fenômeno?

RS: Isso acontece porque nós temos ideias absolutamente equivocadas a respeito da sexualidade. Quando se fala em sexualidade, muitos adultos a entendem como a questão do genital, do sexo. O que tem a ver com o sexo genital é o aparelho reprodutor, matéria que é dada em Ciências. A sexualidade é muito mais ampla, envolve valores sociais e familiares, princípios, leis, envolve quem sou, quem é o outro, envolve afetividade.

O trabalho escolar passa por tirar os filhos do domínio de seus pais para que eles vejam o mundo com os seus próprios olhos

Veja, recentemente tivemos muitas discussões sobre o aborto, até pelo fato da criança vítima de estupro. Entender a questão do aborto no cenário nacional, as leis que determinam suas possibilidades e impossibilidades, e também internacionalmente, os países que aceitam ou não a prática, tudo isso é informação sexual.

A ausência disso tudo é muito preocupante, porque com quem os alunos contam para discutir essas questões, de maneira sustentada pelo conhecimento? Eles não contam com ninguém. Agora, a ideia que as pessoas têm de que a educação sexual vai ensinar a fazer sexo, elas que lutem então contra a Ciência para que os alunos não estudem nem o aparelho reprodutor.

CC: E sobre o fato de termos adolescentes recorrendo menos ao uso da camisinha, estamos diante do mesmo contexto?

RS: Os adolescentes são muito impulsivos – aliás esta é uma característica que marca fortemente a nossa sociedade, inclusive no mundo adulto. Mas voltando ao caso deles, muitas vezes os adolescentes vão para o ato sexual pelo impulso, pelo contexto, pelo momento, e esquecem da camisinha. Esse é mais um aspecto prejudicial da falta de uma educação sexual.

A questão é que não somos marcados por um processo de educação sexual, nem do ponto de vista das políticas públicas. Bom, no atual governo, a gente percebe um esforço oposto a isso, né? Mas em governos anteriores também houve uma falta de empenho nesse sentido, para que isso se torne uma prática absolutamente regular em toda instituição escolar, em todo os postos de atendimento. E isso passa por enfrentar a sociedade tradicional conservadora.

Pegar uma camisinha no metrô, em uma unidade de saúde, ou qualquer outro lugar, é um ato muito simples, não significa nada. O adolescente até tem a informação de que a camisinha previne doenças, e até a pega, mas na hora de usar, ele não a usa.

O que quero dizer é que os adolescentes precisam de um processo constante, é isso que leva à aprendizagem, à internalização das informações. Informação não é conhecimento, é apenas um dado que pode ou não ser usado. Como só um processo educacional, regular, é capaz de levar temas como esse para discussão, então nós não podemos dizer que os jovens são bem informados a respeito da sexualidade. Eles têm algumas informações, mas bem informados não são.

CC: Como você avalia o papel das famílias e das escolas nessa seara?

RS: Vejo muita falta de boa vontade das famílias e das escolas, principalmente. E digo principalmente das escolas, porque a maioria das famílias encaram o tema da sexualidade envolto em tabus, então o máximo que elas conseguem fazer é dar informações com base em seus valores e, muitas vezes, preconceitos. É isso, inclusive, o que está posto na chamada educação domiciliar, da qual eu tenho pavor. As crianças e adolescentes ficariam submetidos a uma única visão de vida, de mundo.

A escola não, a sua concepção se opõe a isso e por isso a sua importância. A função da escola não é somente fazer aquilo que os pais querem, prestar contas às famílias, o trabalho escolar passa por tirar os filhos do domínio de seus pais para que eles vejam o mundo com os seus próprios olhos. As escolas precisam cumprir com os seus trabalhos e um deles é a educação sexual.

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