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Revolta do Vintém, o passe livre do século XIX
As semelhanças entre o movimento popular contra o aumento da tarifa ocorrido há 200 anos e as jornadas de junho de 2013
Quando começaram os protestos em São Paulo contra o aumento da tarifa de ônibus, em 2013, uma das imagens mais difundidas foi a de um rapaz branco segurando um cartaz com os dizeres “Saímos do Facebook”.
A imagem dos jovens clamando por direitos contradizia a ideia de uma geração alienada, plugada na internet e nas redes sociais. À medida que os protestos somaram adesões, ampliando a pauta para questionar práticas políticas e reivindicar direitos, outro estereótipo foi desmontado: o do brasileiro pacífico e passivo.
Ao estudarem os traços típicos do brasileiro, vários pensadores identificaram um elemento de passividade. Desde o século XIX, alusões negativas de intelectuais como Silvio Romero o creditavam ao clima, à natureza e à mistura de raças.
Algumas explicações, por outro lado, notabilizaram-se pela exaltação positiva dessa característica. É o caso do livro para crianças Por Que me Ufano de Meu País, de Afonso Celso, em 1900, ou ainda de explicações com pretensões sociológicas, como a tese da democracia racial, de Gilberto Freyre, ou a da bondade natural do brasileiro, defendida por Cassiano Ricardo.
A vertente patriótica costuma ser apropriada pelos grupos dirigentes, principalmente em momentos de fortalecimento democrático ou ditatorial.
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O reforço da identidade nacional, com a exaltação de um povo brasileiro único (apesar das diferenças) e, sobretudo, pacífico, visa legitimar o Estado, suas instituições e suas leis enquanto expressões da Nação, como hoje é possível entrever no slogan oficial “Brasil, um País de Todos”.
O objetivo é minimizar a percepção de desigualdades, hierarquias e tensões sociais, bem como desqualificar opositores ou justificar ações repressoras contra a própria população, principalmente a mais pobre. Nos momentos tensos, os estereótipos de passividade do brasileiro e do Estado como expressão do povo são postos em xeque.
Podemos notar o traço autoritário em um protesto por direitos citado nas manifestações de junho de 2013, a Revolta do Vintém.
Em fins dos anos 1870, o vintém, que correspondia ao valor de 20 réis, era a moeda de menor valor no Brasil. Na tentativa de sanear uma crise financeira, o ministro da Fazenda do gabinete liberal recém-empossado por dom Pedro II, Afonso Celso, propôs aumentar impostos e taxas, entre os quais a tarifa dos bondes da capital, Rio de Janeiro.
Chegou-se a sugerir que as companhias arcassem com o débito e pagassem por estimativa de passageiros. Entretanto, em 13 de dezembro de 1879, após debates no Parlamento, o ministro anunciou que a tarifa reajustada em 20 réis entraria em vigor no dia 1º de janeiro de 1880. Alegando a legalidade do processo, Celso estabeleceu que os usuários pagariam a conta.
A medida mostrou-se impopular e gerou protestos na imprensa e entre políticos da oposição, com destaque aos republicanos, como o médico e jornalista Lopes Trovão.
Na tarde de 28 de dezembro, após inflamado discurso, ele esteve à frente de um cortejo de 5 mil pessoas rumo à residência imperial para entregar uma petição pela revogação da tarifa. Protegido pela polícia, dom Pedro II recusou-se a receber a comitiva.
Quando, depois, mudou de ideia, a multidão já se retirava e os líderes se recusaram a entregar o documento, visando enfraquecer politicamente o governante. Não houve conflitos, mas uma força policial atacou remanescentes que se dispersavam.
Se a esse episódio violento faltou destaque, o que sobreveio dias depois não passou em branco. Em outro inflamado comício, Lopes Trovão sugeriu boicote à nova tarifa. Revoltada, a população passou a percorrer o centro do Rio esfaqueando animais de tração, espancando condutores, virando bondes, quebrando trilhos e tirando pedras das calçadas para arremessar contra a polícia por trás de barricadas feitas com destroços.
O principal conflito ocorreu na Rua Uruguaiana, quando Exército e Infantaria se uniram à polícia contra os manifestantes, deixando três mortos e cerca de 20 feridos.
Outros protestos de menor vulto ocorreram até o dia 4 de janeiro, mesmo com patrulhamento intenso do centro do Rio de Janeiro pela polícia, que prendeu aqueles que considerou responsáveis por incitar passeatas e proibiu por 12 dias a circulação do jornal republicano Gazeta da Noite.
A repercussão da Revolta do Vintém foi negativa, pois muitos apontaram excessos da polícia e outros tantos pediram nos jornais a revogação da tarifa.
A insistência do ministro em mantê-la levou à queda do gabinete, em março de 1880, e à revogação do tributo, em setembro, pelo governo liberal renovado.
Como apontam os historiadores Sandra Grahan e Ronaldo Jesus, o episódio foi um marco no Segundo Reinado, projetando nomes importantes na cena política e levando os parlamentares a cada vez mais tomarem o povo nas ruas como atores no jogo do poder, como evidenciariam outras causas marcantes na década, tal qual a Abolição e o movimento republicano.
Nesse particular, a República instaurada em 1889 não diferiu do regime anterior. Em um exemplo notável, em 1904, a lei da vacina obrigatória colocou a polícia à frente dos médicos e levou a população do Rio de Janeiro a se revoltar e ser novamente reprimida.
Longe de ser um fato ocasional ou um excesso, a truculência policial e do Exército contra o povo indignado é um padrão recorrente na história do País.
Isso torna atual uma denúncia feita na passeata contra o vintém: “Reivindicar direitos é um crime entre nós, porque os beleguins de polícia estão habituados a espaldeirar o povo, e a vê-lo fugir diante dos sabres dos seus sequazes”.
Se atualizarmos palavras e armas, o trecho vale para os protestos iniciados em junho de 2013, mais recente capítulo das manifestações populares explosivas no Brasil.
Saiba Mais
Chauí, Marilena. Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000
Grahan, Sandra L. O Motim do Vintém e a Cultura Política do Rio de Janeiro – 1880. Revista Brasileira de História, v. 10, n. 20, mar. ago. 1991
Jesus, Ronaldo P. A Revolta do Vintém e a Crise da Monarquia. História Social, n. 12, 2006
* Leandro Almeida é historiador e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
** Publicado originalmente em Carta Fundamental
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