Educação

República high tech de crianças

Escola na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, troca salas de aula, lousas e exposições por mesas coletivas, tablets e aparatos digitais

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Desde que voltou das férias de carnaval, a Escola Municipal André Urani, incrustada na Rocinha, recebe visitas quase diárias da imprensa. É que em fevereiro foi inaugurado ali o primeiro Ginásio Experimental de Novas Tecnologias Educacionais – Gente, uma proposta totalmente diferente de organização escolar. Na André Urani, a ênfase está no método de ensino, baseado em tecnologias digitais que pretendem colocar o aluno no centro da própria formação, conduzindo seu processo de aprendizagem e dependendo menos dos professores.

O projeto de Ginásios Experimentais Cariocas (GECs), do qual o Gente faz parte, começou em 2011. São hoje 29 estabelecimentos de Ensino Fundamental, incluindo escolas vocacionais, voltadas à prática da música, esportes ou artes visuais.

Um dos pontos centrais do projeto é a ênfase nas ideias de autonomia dos alunos. Isso significa que o professor, antes ator central e autoridade máxima nas aulas, se transforma em um mediador, já que não só as aulas expositivas foram abolidas, mas todo o conteúdo passou a ser transdisciplinar. Para lecionar no Gente, um professor de Língua Portuguesa também precisa ser versado em Geo­grafia, História e Matemática.

“Hoje, o professor não é mais a figura central do ensino. Estou aqui para mediar o acesso dos alunos à informação, promover situações em que eles possam aprender a aprender sozinhos”, afirma o professor Diego Pinheiro Teixeira, de 28 anos. “Existe uma preocupação com a formação moral dos alunos, com a ideia de solidariedade, de ajudar o colega com uma dúvida. Aqui me sinto um educador de verdade, não apenas um professor”, completa.

Essa mudança de ênfase significou um adeus às carteiras enfileiradas na sala de aula, dando lugar a mesas redondas, livros ­espalhados, computadores, pufes e pisos coloridos. Sem paredes delimitando salas de aula nem separando séries, alunos de níveis e idades diferentes são reunidos em grupos de seis pessoas, que, juntas, realizarão suas atividades até o fim do ano letivo. Com isso, a escola busca criar um processo colaborativo de aprendizado, no qual a ajuda para sanar dúvidas entre colegas é priorizada em relação à assistência do professor.

A estrutura de aulas também foi completamente demolida em favor da intensificação do uso da Educopédia, uma plataforma digital interativa de aulas e exercícios com vídeos, jogos e desafios criados colaborativamente por educadores da rede municipal, com conteúdo para a formação de professores e alunos segundo as orientações curriculares da Secretaria Municipal de Educação. A plataforma, que é usada como ferramenta complementar na rede municipal de ensino, é o principal instrumento de estudo no Gente. A flexibilidade de sua estrutura permite que os alunos avancem ou revisem conteúdos anteriores em ritmo próprio.

Na primeira semana de atividades, a escola promoveu uma avaliação geral da aprendizagem de cada aluno, a fim de diagnosticar o estágio individual em uma das disciplinas, além de outras habilidades, como liderança, comunicação, capacidade de trabalho em grupo e senso crítico. A partir disso, cada estudante recebeu seu itinerário de aprendizado – um roteiro de atividades pedagógicas feito sob medida de acordo com o que era preciso recuperar ou aprender. “Assim, quem está no oitavo ano e  tem uma defasagem no conteúdo de Matemática do sexto poderá reforçar esse aprendizado ao longo do ano”, diz a diretora, Márcia Silva. “E, se não tiver pontuação satisfatória na Máquina de Testes naquela semana, terá aula de reforço na sexta-feira, em vez de participar da atividade interdisciplinar com os colegas”, afirma.

A Máquina de Testes é um programa de avaliação dentro da Educopédia a que os alunos são submetidos semanalmente. Ela substitui as provas mensais, bimestrais ou semestrais e procura indicar exatamente em que o ensino deve ser reforçado, na semana da aprendizagem. Nelson de Oliveira Reis Júnior e Léia Luna, ambos de 14 anos, dizem que o método de avaliação facilita o desempenho, já que não há a pressão ou a cobrança das provas normais. Mas também ressaltam a importância do interesse individual pelo estudo, o que não é o caso de todos os colegas.

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Entre gastos com infraestrutura, equipamentos, consultorias e capacitação, o projeto custou 3,5 milhões de reais e contou com o apoio de fundações e empresas da iniciativa privada: Instituto Natura, Fundação Telefônica, Fundação Lemann, Intel e Microsoft, entre outras. Segundo Mílada Tonarelli Gonçalves, gerente da área de Educação e Aprendizagem da Fundação Telefônica Vivo, a colaboração do patrocinador foi geral – desde a transformação do ambiente até o aprimoramento da Máquina de Testes e o desenvolvimento do processo de aprendizagem personalizado. Ainda segundo ela, a decisão conjunta de instalar o Ginásio Experimental na escola da Rocinha veio da necessidade de formação de lideranças em lugares onde se precise de transformação. “São 180 alunos que lideram o próprio processo de aprendizado, e esperamos em breve ter 180 novos líderes na Rocinha”, afirma Mílada.

Para o idealizador do projeto e subsecretário de Novas Tecnologias para a Educação da Secretaria Municipal, Rafael Parente, os GECs são espaços para experimentação de inovações na educação que buscam chegar a um modelo de escola mais atual para todo o Rio de Janeiro. A concepção foi baseada em inovações já implantadas no Brasil, como o Ginásio Pernambucano e a escola Nave (Núcleo Avançado em Educação), no Rio. No exterior, foram visitadas as escolas Fontana, na Colômbia, a Escola da Ponte, em Portugal, e as High-Tech High e School of One, nos EUA. Todas com propostas de individualização do aprendizado, autogestão dos alunos e uso de suportes tecnológicos em diferentes níveis. Parente afirma que o Gente vai além de qualquer iniciativa na rede municipal do Rio, porque puxa as inovações dos GECs para o extremo, mas reconhece que mudanças não ocorrem da noite para o dia e que ainda há muito o que resolver.

Um exemplo do que precisa ser melhorado é a adesão dos professores – acostumados a ser o centro do processo de aprendizagem – ao novo papel de agente passivo, que fala menos, controla menos e volta-se mais aos alunos com mais dificuldades. “Boa parte dos professores ainda se posiciona de maneira controladora”, comenta Parente. Também há desafios para o melhor desempenho das tecnologias da informação, dependentes de processos de licitação de infraestrutura, que são morosos, e do aperfeiçoamento de redes e plataformas. Apesar disso, é um entusiasta do bom desempenho dos alunos que utilizaram a Educopédia na Prova Rio, exame do Ensino Fundamental do município aplicado pelo Centro de Seleção e de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília.

Para Raquel Goulart, especialista em Tecnologias Aplicadas pela Educação e pesquisadora docente da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o acesso à tecnologia digital tem de ser viável a todos e seria uma forma de exclusão inaceitável não incorporá-las aos processos pedagógicos.

No entanto, alerta que, sem formação crítica, os resultados podem ser tão bons quanto ilusórios e, mais que o simples acesso à tecnologia, é preciso fortalecer a capacidade crítica de professores e alunos. Raquel explica: “As tecnologias da informação e comunicação não são a solução para todos os problemas educacionais e sociais. Sua fetichização distorce as questões envolvidas. Do ponto de vista da formação de professores, sugere que o trabalho docente tenha se tornado mais simples, pela oferta de aulas prontas, muitas vezes denominadas ‘objetos de aprendizagem’. Do ponto de vista dos alunos, superdimensiona as atividades desenvolvidas no contato com os equipamentos, mesmo que elas estejam bem próximas das desenvolvidas com lápis e papel”.

Segurando uma folha de caderno escrita à mão, a diretora, Márcia Teixeira, lê as requisições dos alunos, que se organizaram em um grêmio improvisado. Entre os pedidos: música na hora do recreio, mais tempero na comida, mais jogos e pufes. “Eles enlouqueceram com os pufes, amaram. Estamos pedindo para comprar mais, porque esses já não são suficientes”, diz a diretora, que pediu que os alunos fizessem sugestões e reclamações. “Ainda não chegamos lá, mas a ideia é essa”, afirma a diretora, lembrando que o projeto ainda está no início e que não se sabe como essa participação será desenvolvida.

*Publicado originalmente em Carta Fundamental

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