Educação

Refazendo a conta

O professor e autor de livros didáticos Luiz Márcio Imenes 
avalia as razões que levam ao baixo desempenho do aprendizado matemático

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De tempos em tempos, as notícias sobre o desempenho dos alunos nos exames atestam que o ensino de Matemática é falho. A partir de dados da Prova Brasil, um estudo realizado pelo Movimento Todos Pela Educação revela que 36% dos alunos do primeiro ciclo do Fundamental terminam o quinto ano com conhecimentos adequados na disciplina. No caso da segunda etapa do Fundamental, os resultados pioram: só 17% pontuam adequadamente na avaliação.

Os motivos, segundo o mestre em Educação Matemática e autor de livros didáticos Luiz Márcio Imenes, são muitos. Em primeiro lugar o desempenho insatisfatório não é recente ou exclusividade brasileira. Mudanças na estrutura da própria escola, diferenças entre a Matemática ensinada e a cobrada pelas avaliações e sistematizada nos Parâmetros Curriculares Nacionais, desvalorização e despreparo do corpo docente ajudam, em parte, a explicar as notas baixas. “As novas proposições para um novo ensino não chegam à sala de aula”, afirma Imenes, que conversou com Carta Educação sobre problemas e soluções possíveis para o ensino da Matemática.

Carta Educação: Levantamento realizado pela ONG Todos pela Educação indica que apenas 17% dos estudantes brasileiros concluem o Ensino Fundamental com níveis adequados no aprendizado de Matemática. Quais são as razões para isso?

Luiz Márcio Imenes: Estamos diante de um fenômeno complexo e de causas múltiplas. É de longa data que esse desempenho insatisfatório é notado. Ele atravessa todas as disciplinas. O problema com a Matemática é mais notado porque ela goza de muito prestígio social. O desempenho está muito ruim, muito aquém do que todos esperariam, mas é também necessário tomar cuidado, porque às vezes se diz que antigamente a escola era melhor e que estamos piorando. Essa afirmação me parece equivocada, porque de longa data se aprende pouca Matemática, ela sempre foi uma disciplina com altos índices de reprovação.

A escola, pública ou particular, era então pensada para pouca gente. Hoje buscamos uma escola para todos, em que todos aprendam. Além do que, competência matemática era saber fazer conta. Hoje é algo mais abrangente e ambicioso, implica competências relacionadas à resolução de problemas, em saber aplicar o conhecimento em situações da vida real. Os objetivos são outros. De certo modo, as próprias avaliações já sinalizam algumas coisas quanto às causas desse fenômeno. Quais são as escolas públicas com melhor desempenho? As escolas militares e as antigas escolas técnicas federais costumam ter um desempenho mais satisfatório.

CF: Quais as causas do melhor desempenho dessas instituições?

LMI: São escolas cujos professores têm as melhores formações, em geral são professores concursados, cujas condições de trabalho são mais atraentes e com vínculos fortes com a escola. Além disso, os alunos foram selecionados, em alguns casos, com vestibulinhos. Ou seja, são alunos que querem ou gostam de estudar, o que não é o caso da massa dos estudantes. O desempenho da escola como um todo depende de seus agentes, das pessoas que estão relacionadas com o fazer da escola. Quem são eles? Alunos e professores se sobressaem, mas não são os únicos. Há os dirigentes da instituição, as famílias e aqueles com poder de controlar as verbas da educação. Qual é o cenário que observamos na escola básica quanto ao professorado brasileiro, particularmente o de Matemática? A licenciatura é uma opção profissional que não existe na cabeça de um jovem que está no final do Ensino Médio.

CF: O atual modelo de licenciatura é adequado?

LMI: A licenciatura, não só em Matemática, vem sendo criticada. Alguns, em tom de brincadeira séria, dizem: “Eu não sei quem a licenciatura forma, mas professor não é”. Esse modelo é chamado de “modelo três mais um”, ou seja, três anos de Matemática e um ano de disciplinas pedagógicas. E ele tem se mostrado inadequado. Se já sabemos que a maioria dos universitários de licenciatura teve uma formação precária na escola básica, seria preciso retomar esses conteúdos, mas agora em uma perspectiva de quem vai ensiná-los. Isso não acontece, só em casos muito isolados. Há uma resistência grande. Parte da academia no Brasil entende que para ser bom professor de um conteúdo basta saber aquele conteúdo.

No início da criação da escola, não se ensinava Matemática. A inclusão vem com as mudanças sociais, na medida em que esse saber se tornou mais necessário na vida das pessoas. Quando a Matemática é incluída na escola, toma-se como modelo para o ensino uma obra monumental chamada Os Elementos de Euclides, cuja abordagem é inadequada para crianças e jovens. O que Euclides faz é a sistematização do conhecimento matemático, última etapa da criação da Matemática. Mas esse livro orientou o ensino. A forma de se apresentar a disciplina na escola, durante muitas décadas, foi essa e pouca gente conseguiu aprender com essa orientação. Atualmente, há um grande esforço para mudar esse projeto, conhecido como Movimento de Educação Matemática. No Brasil estamos organizados na Sociedade Brasileira de Educação Matemática.

CF: Quais mudanças são propostas?

LMI: Uma referência boa, de acordo com as novas orientações, são os Parâmetros Curriculares Nacionais. Se já tivéssemos conseguido colocar em prática, não teríamos esse desempenho ruim. Não são mudanças apenas metodológicas. O método arcaico reduziu a Matemática da escola a saber calcular. A maioria, durante a escola básica, essencialmente aprendeu isso. Começa com continhas de adição e vai em frente. Isso faz crer que saber Matemática é saber fazer conta, o que é um equívoco. Outra coisa é que a disciplina escolar é apresentada com base em regras de procedimentos, que devem ser feitas de forma mecânica. Isso também é um equívoco.

O que se pretende hoje é que o cálculo passe a ter um papel coadjuvante e, ao mesmo tempo, valorizar o cálculo mental, que tem utilidade prática social e formativa muito grande. O cálculo mental possibilita diferentes maneiras de se chegar a um resultado. O cálculo escrito permanece, mas com outra finalidade. Fazer conta com papel e caneta hoje é irrelevante, mas há 50 anos era valorizado. Investir no cálculo escrito mecanicamente é uma irresponsabilidade da escola. No mundo inteiro, 90% do tempo dedicado à Matemática continua sendo essas coisas. Essa tradição é difícil de ser rompida.

CF: Como as avaliações se relacionam com o ensino da Matemática?

LMI: O fraco desempenho dos alunos é medido por meio da Prova Brasil. A Prova Brasil é uma prova de resolução de problemas, mas a escola ensina uma coisa e o que se avalia é outra coisa. Todas essas avaliações focam a resolução de problemas, as habilidades de cálculo aparecem, mas com caráter coadjuvante e de forma básica. Não podemos discutir as causas do mau desempenho medido por uma prova sem discutir a prova. Nenhuma avaliação é neutra. Essas avaliações estão dando um recado para a escola: a escola precisa mudar. O problema é que as causas principais que dão origem a esse desempenho ruim não são atacadas.

CF: No caso da Prova Brasil, o desempenho dos alunos em Matemática é melhor nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Por que vamos melhor nos anos iniciais?

LMI: O que nós constatamos é que a professora do Fundamental I é mais sensível às dificuldades do aluno do que o professor especialista, pela formação e pela forma de trabalho. Elas estão mais próximas dos alunos. Essa pode ser uma causa da diferença do desempenho. O outro é que a Matemática ensinada até o sexto ano é mais fácil de ser contextualizada e relacionada com a vida das pessoas. Isso facilita muito o ensino. As aplicações não são tão visíveis na Matemática ensinada a partir do sétimo ano. Além disso, as proposições dos parâmetros encontraram menos resistência entre as professoras do primeiro ciclo do Fundamental.

CF: Quais ações podem ser tomadas, no âmbito das políticas públicas, para tentar equacionar e melhorar o ensino de Matemática?

LMI: A primeira coisa seria a valorização do magistério. Tornar a profissão atraente também significa buscar meios de valorizá-la socialmente. Segundo, há a questão da formação do professor. As licenciaturas precisam de um novo projeto. A Sociedade Brasileira de Educação Matemática tem propostas para isso. Em terceiro lugar, dar forças a essas novas proposições, nem tão novas assim, já presentes nos parâmetros curriculares nacionais, em documentos de secretarias de educação e que de certo modo têm norteado a avaliação dos livros didáticos, mas que não chegam muito às salas de aula. Não chegam porque as políticas públicas muitas vezes não têm continuidade, há resistências na sociedade e em alguns setores da Academia, sobretudo nos meios matemáticos.

CF: Quais são as perspectivas para o futuro? Estamos avançando no ensino?

LMI: É preciso ter perspectiva histórica. As coisas não avançam no ritmo que eu desejo ou que a sociedade talvez precisasse. Há 300 anos, não havia escola como conhecemos hoje. A escola torna-se necessária com a urbanização, industrialização, democratização e todas essas mudanças. Mas ainda estamos aprendendo a fazer essa escola em que se almeja que a maioria aprenda bem. É uma ambição recente. Precisamos de saberes científicos para fazer essa escola. Os saberes, porém, chegam muito lentamente na sala de aula. A escola hoje, com tudo que tem de ruim, é melhor que a do passado, sobretudo porque já temos quase todo mundo dentro dela. Isso é um avanço.

*Publicado originalmente em Carta Fundamental

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