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Quadro negro

Na equipe de transição, afloram as divergências sobre os rumos da educação pública no Brasil

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Injustiça. O Estado não pode ignorar o contexto socioeconômico dos estudantes e punir o professor, sustenta Leher - Imagem: Marcelo Camargo/AFP e iStockphoto
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Mal começou a transição de governo e uma intensa disputa instalou-se na área da Educação. Após o vazamento de uma lista de nomes cotados para compor o grupo de trabalho, a maioria ligada ao setor empresarial, o campo popular, formado por professores, estudantes e acadêmicos, sentiu-se preterido. A pressão surtiu efeito e poucos dias depois, em 14 de novembro, foram anunciados os integrantes da equipe que vai trabalhar para a instalação do novo governo, agora mais equilibrada.

O embate revela o tom que deve marcar as discussões sobre os rumos da educação nos próximos quatro anos. “Muita guerra”, resume Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, conhecida pela sigla CNTE, e integrante da equipe de transição. Atualmente, há uma clara divisão no grupo. De um lado estão os representantes de fundações, ONGs e grupos empresariais, a defender uma educação voltada ao cumprimento de metas e focada na preparação de profissionais para um mercado cada vez mais competitivo. De outro, estão as organizações sindicais e entidades estudantis, a defender uma educação emancipadora, capaz de formar cidadãos críticos, e focada na melhora das condições de trabalho dos docentes, a começar por um plano de carreira.

Em toda gestão, é natural haver divergências. Os especialistas convocados para a transição não precisam estar sempre de acordo, basta ter disposição para buscar consensos, observa o biólogo e pedagogo Roberto Leher, ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Temos alguns pontos em comum e que são estratégicos. O primeiro é limpar a educação das proposições da ‘ideo­logia de gênero’, das proposições racistas, da interferência das igrejas, do modelo cívico-militar, aqueles elementos mais grotescos da guerra cultural travada pelos bolsonaristas. E aqui nós estamos de acordo, porque ambos os lados acham isso tudo um desastre.”

Mas não é simples avançar em certos debates sem resvalar em velhas contendas. Há poucos anos, o campo empresarial conseguiu emplacar no Plano Nacional de Educação um sistema de metas, visto com desconfiança por muitos educadores. “O Brasil deve ser o único país do mundo que prevê em lei o número de pontos que uma escola deve alcançar. E o repasse de recursos varia conforme o desempenho de cada uma. Trata-se de um modelo coercitivo e injusto, porque os professores ganham mal, são superexplorados e, para melhorar o salário, precisam fazer com que seus alunos obtenham boas notas nas avaliações”, afirma Leher. “É uma visão ultrapassada, que remonta aos anos 1930 e 1940, quando os gestores públicos desconsideravam o contexto socioeconômico dos alunos.”

De um lado, a defesa do sistema de metas e avaliações. De outro, a luta por melhores condições de trabalho. Lados irreconciliáveis?

As críticas são reforçadas por Araújo, da CNTE. “A educação é um espaço da cooperação, da colaboração, da solidariedade, não pode ser tratada como arena de competição”, alerta. “Ter o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) para que as escolas disputem umas contra as outras é inapropriado. É preciso fomentar a participação social através dos instrumentos democráticos, como o Conselho de Classe e o Conselho Escolar, estimular a criação de um projeto político-pedagógico coletivo. Enquanto não conseguirmos convencer internamente o governo de fortalecer essas políticas, vamos ter uma disputa muito forte.”

Para Fernando Cássio, professor de Políticas Educacionais da UFABC, o governo não pode se esquivar desse debate. “A oferta de merenda escolar, por exemplo, é prioritária. Uma criança com alimentação desequilibrada não tem bom desempenho escolar”, observa. “O futuro ministro precisa ter olhar sensível para as perdas de aprendizagem na pandemia, deve pensar na recomposição orçamentária das universidades e dos institutos federais. Hoje, muitas instituições estão em situação calamitosa, sem recursos nem para pagar as contas de luz, água e telefone.”

O especialista elenca, ainda, uma série de políticas educacionais que precisam ser descontinuadas imediatamente: “A militarização escolar, os programas de alfabetização do governo do Bolsonaro não respaldados em evidências científicas, o estímulo à educação domiciliar, o próprio aparelhamento dos órgãos internos do MEC, tudo isso precisa ser revisto com urgência”.

Na avaliação de Maria Izabel Azevedo Noronha, deputada estadual pelo PT de São Paulo e presidente da Apeoesp, o sindicato dos professores paulistas, a equipe de transição não pode ignorar as precárias condições impostas aos profissionais da educação. “Queremos discutir qual é a política de valorização. Será subsídio? Ou vamos ter carreira, concurso público, valorização salarial, o mínimo de dignidade?” Bebel, como a parlamentar é conhecida, lembra que os docentes estão na linha de frente da educação. São eles que vivenciam os problemas na sala de aula, mas raramente suas ponderações são levadas em conta. “Não adianta empurrar a responsabilidade para o professor, se ele não tem condições adequadas para trabalhar, por vezes tira dinheiro do próprio bolso para comprar materiais. Chegou o momento de tratar a educação como política de Estado.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Quadro negro “

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